A conclusão a que se chega, depois de se ler “Samora Machel – Na Memória do Povo e do Mundo” é a de se estar diante de uma bolsa de ensinamentos actuais, porém desusados por uma sociedade (cada vez mais) carente de valores. Dizer o contrário, se é que se deve, não se difere de recusar a algumas transformações sociais de que necessitamos.
“Samora Machel – Na Memória do Povo e do Mundo Vol. 1” e Memórias da Revolução: 1962-1974 Vol. 1” são as duas obras publicadas pelo Centro de Pesquisa da História da luta de Libertação Nacional (CPHLLN).
A primeira obra contém uma série de discursos proferidos pelo Presidente Samora Machel em diversas circunstâncias, sendo que a segunda resulta de uma colecção de entrevistas feitas a alguns protagonistas da luta libertária.
Na cerimónia de lançamento dos livros (cada uma tiragem de três mil cópias), os mentores da iniciativa e o Governo reiteraram a necessidade de 50 por cento dos livros serem distribuídos nas escolas e bibliotecas nacionais, como forma de promover o acesso à informação e ao conhecimento contidos nas referidas obras.
Refira-se que a publicação das duas obras, que se enquadra no projecto “Memórias do Combatente”, dinamizado pela CPHLLN, é um dos primeiros passos para a divulgação de “uma série de de episódios e memórias dos protagonistas do processo de Luta de Libertação Nacional”.
Neste sentido, na obra “Samora Machel – Na Memória do Povo e do Mundo” faz-se o enquadramento dos ensinamentos dos samorianos, dando maior enfoque ao seu contributo para a superação dos problemas que enfermam a sociedade moçambicana na actualidade.
Acredita-se que “Samora Machel – Na Memória do Povo e do Mundo” seja uma publicação que vem em boa hora sobretudo porque a sociedade moçambicana configura-se como um espaço marcado pela degradação de “valores morais e patrióticos dos cidadãos”.
Conforme o director executivo do CPHLLN, Carlos Siliya, escreve na nota introdutória do referido livro, o essencial é que “todo o povo moçambicano, do Rovuma ao Maputo, recorda os ensinamentos de Samora Machel”, ao mesmo tempo que “sente a sua falta para disciplinar a sociedade assolada pelo egoísmo, pelo espírito de “deixa-andar” e pela corrupção”.
Esta realidade leva os autores do livro a questionar: “O que o Presidente Samora Machel não nos ensinou, e que não sirva de lição e chamada de atenção para hoje e para o futuro? Não é motivo para dizermos que Samora Machel foi como que um profeta, porque os seu ensinamentos foram válidos ontem, são válidos hoje e ainda serão valiosos amanhã?”
Mais importante ainda é que – assevera Siliya – “com este livro, temos tantas lições para tornarmo- nos mais robustos contra as manobras do inimigos de ontem e de hoje, que aparecem camuflados com outras capas e pretendem fomentar o tribalismo, o regionalismo e incitam à violência para mergulhar no caos o nosso belo país, à custa das suas vontades”.
Muitas memórias em revolução
Enfatizando a relavância de se construir/reconstruir as “Memórias da Revolução: 1962-1974” grafa o seguinte dizer no texto que constitui o prefácio, de uma obra que, na verdade, é uma colectânea de entrevistas feitas aos combatentes da luta de Libertação Nacional:
“O meu camarada, amigo de longa data, combatente emérito da luta de libertação nacional, Raimundo Pachinuapa, entendeu e, com razão, que a sua tarefa pessoal e da nossa geração permaneceria incompleta se não se registasse a memória dos eventos, se não se resgatasse a nossa História, tantas vezes denegrida pelos inimigos de sempre e pagada pelas inércia e compromissos, quer do sistema curricular da educação, quer mesmo da comunicação social.”
Na verdade, o livro memórias da Revolução imortaliza o nome – e talvez o pensamento – de cerca de 20 combatentes, homens e mulheres de todos o país, alguns dos quais já mortos mas que deram a sua alma pela causa libertária de Moçambique.
Até porque no caso de Moçambique, “registos sobre a sua obra e parte da sua história, foram feitos por povos estrangeiros, sonegando muitas vezes os verdadeiros factos para salvaguardar os seus interesses coloniais”, acrescenta Raimundo.
Conte-se que as entrevistas publicadas nestas Memórias da Revolução foram feitas pela Associação que, em Outubro de 2006, fundou o Jornal Nachingweia, propondo-se como meta registar os factos sobre o passado histórico de Moçambique, com enfoque para a luta de libertação nacional.
O que se pode aprender
Pelas proporções didácticas que o primeiro livro, “Samora Machel – Na Memória do Povo e do Mundo”, propõe, auxiliando a sociedade não somente a compreender as lacunas que a enfermam (tornando-na, em certa medida, precária), ao mesmo tempo que sugere os trilhos porque caminhar, decidimos resumir dois dos seus diversos temas. Assim, numa espécie de exercício que cada pessoa pode fazer, o @Verdade aborda dois sectores fundamentais que preocupam os moçambicanos – Educação e Saúde – à luz da compreensão “Samoriana”, propondo uma forma de organizar o novo ano.
Como se concebeu a educação
Quer queiramos quer não, sempre estamos em guerra, ainda que não seja bélica. Por isso, aceitemos a colocação do Presidente Samora Machel, quando em seu discurso proferido em Novembro de 1973 afirmou: “Educar o homem para vencer a guerra. Criar uma sociedade nova e desenvolver a pátria”.
Desde cedo, Samora compreendeu que a “cultura e a educação constituem problemas fundamentais do nosso Povo”. Até porque para si, delas dependia em definitivo a criação de uma nova mentalidade.
Questionar o problema da educação no país, tendo em conta a realidade socio-política de então – caracterizada por um Moçambique em busca da independência – pode não ser um exercício importante. Mas importa ressaltar a preocupação que se tinha em compreender as diversas naturezas de educação e seu propósitos.
Foi neste sentido que naquela data de 1973, Samora chegou à conclusão de que, naquela fase, existiam em Moçambique três tipos de educação, antagónicos: dois reflectindo as sociedades em vias de desaparecimento e o terceiro orientado para o futuro.
Na sua colocação, Samora referia- se, respectivamente, à educação tradicional, colonial e revolucionária. Criticou a educação tradicional, ainda que africana, por compreender que ela possuía alguns aspectos nocivos.
Ou seja, ela “visa transmitir a tradição , erigida em dogma. O sistema de classes, de idade, de ritos de iniciação, tem por objectivo integrar a juventude nas ideias velhas, destruir-lhe a iniciativa. Tudo o que é novo, diferente e estrangeiro, é combatido em nome da tradição. Assim se impede todo o progresso e a sociedade sobrevive no seu imobilismo”.
Pior ainda, neste género da educação, a mulher, acrescenta Samora, “é concebida como um ser humano de segunda categoria, submetida à prática humilhante da poligamia, adquirida através de um dom feito à sua família, herdada por parentes na morte do marido, é educada para servir o homem”.
Educação colonial e degradante
“Se a inovação, a ciência, aparecem como perturbadoras das estruturas enferrujadas do passado, em contrapartida, o capitalismo utiliza-as para melhor explorar o homem”, disse Samora, para quem “quanto mais a sociedade tradicional combatia o individualismo, tanto mais o capitalismo o favorece na medida em que cria no explorador a mentalidade propícia para explorar a vítima”.
A consequência imediata – desta realidade – que instigou Samora Machel a criticar a educação colonial é que ela procurava “especialmente despersonalizar o moçambicano.
Longe do povo que lhe ensinaram a desprezar, isolado pelo individualismo que lhe inculcaram…, sem conhecimento do seu espaço dado pela Geografia, vivendo de ideias importadas, corrompidos pelos gostos decadentes da sociedade colonial, o moçambicano deve tornar-se num preto português de pele preta, instrumento dócil do colonialismo, cuja ambição máxima é viver como o colono, à cuja imagem foi criada”.
Todas as situações e condições instigaram os moçambicanos daquela época a pegar em armas – o pegar em armas agora deve prefigurar a tomada de uma nova atitude – para derrubar a ordem antiga. A meta era edificar uma “nova sociedade, forte sã, próspera, em que os homens, livres de toda a exploração, colaborariam para o progresso comum”.
A proposta
Assim, ao combater o educação tradicional – muitas vezes considerada como obscurantismo – bem como o colonialismo, Samora Machel propunha-se a criar uma atitude de solidariedade entre os moçambicanos capaz de fazer desenvolver o trabalho colectivo, eliminando o individualismo. Ora, isto passava pelo desenvolvimento de “uma moral sã e revolucionária que promovesse o desenvolvimento da mulher, a criação de gerações com um sentido colectivo de responsabilidade”, o que, em parte e acima de tudo, passava pela “destruição das ideias e gostos corruptos herdados”.
Levando o seu pensamento ao extremo, no campo da educação, Samora Machel dizia que “a educação para nós não significa saber ler e escrever, fazer de um grupo uma elite de doutores, sem relação directa com os nossos objectivos”.
Num outro desenvolvimento, Samora deixou claro os objectivos que a educação, em Moçambique, devia perseguir e atingir – a revolução – ao referir-se à necessidade de a acção dos moçambicanos não ser amorfa.
Afinal, “assim como se pode fazer uma luta armada sem se fazer revolução, também se pode ensinar sem se educar de uma maneira revolucionária”. Por isso, “não queremos que a ciência sirva para enriquecer a minoria, oprimir o homem e retirar a iniciativa criadora das massas, fonte inesgotável do progresso colectivo”.
Como era o sector da saúde no tempo de Machel?
Ainda que se concedesse um lugar cativo ao hospital na hierarquia das instituições do Governo, a leitura que se nos oferece sobre o sector da saúde – nos anos posteriores à conquista da independência – não pode ser a mais pitoresca. Até porque as possibilidades de tal sê-lo, olhando para a realidade social e política de então, eram diminutas.
De uma ou de outra forma, a vontade do Governo em torná-lo um sector que não devia revelar a sua fraqueza, porquanto um dos poucos pontos de contacto “entre o povo e Estado”, o local de “recuperação física e mental dos cidadãos, do Povo”, provavelmente fizesse alguma diferença.
Desordem nos hospitais
Ao que tudo indica, a questão do poder e (des)ordem nas unidades sanitárias do país não são actuais. A única diferença, provavelmente, é que na altura os mecânicos não ousavam em querer ser ginecologistas.
“O Director Provincial – que é muitas vezes o Director do Hospital – não possui autoridade sobre o conjunto do pessoal. Esta falta de autoridade resulta da notória falta de hierarquização, da falta de definição clara de competências e do lugar que cada trabalhador ocupa na realização da tarefa principal”, constatara Machel, nas suas visitas aos hospitais nacionais.
Naquela altura, esta falta de autoridade já desorganizava aquela instituição vital. As consequências mais notáveis, apontadas pelo presidente, são a diluição do poder. Basta reparar:
“É o médico que prescreve para o doente, e o pessoal responsável pelo seu cumprimento não executa; É o enfermeiro que quer as seringas esterilizadas, mas não se condicionou o petróleo para o fogão; É o doente que sofre e ninguém liga; É a criança incomodada e tratada”.
Foi nesta futilidade profissional, verdadeira falta de ética e deontologia profissional que muitos moçambicanos perderam a vida. Na ocasião, constatou-se que o sector da saúde havia alcançado alguma evolução, como nos dias que correm muitos aspectos podem ser apontados como estando a minar o progresso.
Mas esta pretensa vontade de servir o povo e, de colocar os homens – a nossa matéria – ao serviço do progresso suavizava um pouco de tudo. Muitos outros aspectos podem ser explorados por cada pessoa desde que se dê o tempo de ler o livro.
Ora, se para Machel o povo prefigurava o professores, o enfermeiro, o operário, o camponês, o advogado, o mecânico, etc., será que nas condições actuais do país actual, Samora Machel continua (efectivamente) na sua memória, do povo?