Se os ventos do Norte movessem moinhos, Salimo Mohamed voltaria hoje a tentar triturar os meus testículos com as mãos, como o quis fazer no ano 2000, depois de ter lido e desagradado com um texto que publiquei na minha coluna de então, intitulada “Palavras de Resgate”, no jornal Savana. Salimo, visivelmente endiabrado, segurava-me pelas golas e dizia, nita ku manya kendze mufana (vou-te esmagar o testículo, rapaz!).
Nesse ano Salimo Mohamed publicou um CD que se chamou Mugubani. Ofereceu-me um exemplar para ouvir e dar a minha opinião sobre o trabalho, como amigo e como jornalista. Depois de escutar várias vezes o disco, desdenhei a obra. A qualidade técnica não era das melhores, a voz do Salimo parecia oprimida e, para agravar a apresentação do produto final, a captação não foi feita ao vivo, o que vai impedir a total liberdade de um leão que morre quando é colocado na jaula.
Fui intelectualmente honesto quanto ao que senti depois de viajar por todas as faixas. Não olhei para Salimo como homem e amigo, mas tive em consideração o músico renomado e que está na obrigação, por tudo o que faz e que fez, de apresentar desempenhos em alta rotação. Disse publicamente que não gostei do disco. Disse também que o autor de Mugubani merecia um tratamento técnico digno do seu porte porque, ao ouvir aquele CD, fiquei com a sensação de que Salino parecia um leão, sim, mas sem juba e sem garras e sem dentes. Foi esta expressão que contrariou o meu amigo.
Salimo Mohamed vestiu a pele de fera, foi, como o fazem os felinos, silenciosamente pela avenida Amílcar Cabral até à Redacção do Jornal Savana. Quando o vi chegar, fiquei contente, pensando que vinha para me dar um abraço em felicitação àquilo que escrevi.
Enganei-me. Salimo atirou-se às golas da minha camisa, apertando-me e dizendo, nita ku manya kendze mufana (vou-te apertar o testículo, rapaz!). E Salimo Mohamed não cometeu o pior porque rapidamente houve intervenção dos seguranças, e eu tive de me esconder, depois de solto das garras do agressor, no gabinete do editor Salomão Moyana, até que tudo se desvanecesse. Passei a ter medo do músico. Na cidade de Maputo tinha que me mover como um rato, não iria Salimo tecê-las (as palavras) outra vez.
Vivi momentos de pavor até que um dia, nas imediações da Associação dos Escritores Moçambicanos, vejo Salimo subindo, no seu estilo característico, a avenida Amílcar Cabral em direcção à casa onde morava. Tentei esconder-me entre os transeutes mas ele já me tinha divisado, eu numa margem e ele na outra. Entrei em pânico e o meu carrasco apercebeu-se do tormento que me habitava. Parou e, do lado onde se encontrava, ciciou na sua voz rouca que passou, naquele momento, de agradável para sinistra:
– Chaúque, devolve o meu disco.
– Está bem, Salimo, não o trago comigo aqui, mas posso fazer isso amanhã.
– A que horas? – Pode ser às 09h:00?
– Onde?
– Na Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO).
– Está combinado, Chaúque, vê lá o que fazes!
No dia seguinte esperei pelo Salimo Muhamed na AEMO, com o disco na mão. Na hora combinada ele entra pelo portão da esplanada, sereno, no seu estilo único. Vai directamente à mesa onde estou sentado com os meus amigos, que me aconselhavam a ter calma e que eles iriam falar com o músico, que também é ídolo deles. Quis fugir, mas eles diziam “não Chaúque, não fujas, Salimo não te vai fazer mal. Ele é um ser humano, comete erros como toda a gente. Mas tem um coração pequeno. Quando é abanado com carinho fica uma criança”.
Chegou à nossa mesa e sentou-se.
– Então, Chaúque, trouxeste o disco?
– Está aqui Salimo, podes levar.
Salimo Muhamed deixou cair dois fios de lágrimas. Levantou-se. Eu também ergui-me. Percebi que não haveria violência. Afastámo-nos um pouco e abraçámo-nos profundamente. Eu também chorei. Comovido pelo gesto de um homem que agora fica ao nível de uma criança.
– Desculpa, Chaúque, fica com o disco, não tinha percebido o teu texto. Sei que fizeste aquilo por amor, pelo respeito que tens por mim e pelo meu trabalho.