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Ruínas arruinadas!

Ruínas arruinadas!

Depois de 540 dias de trabalho intenso. Perto de dez mil “ruínas arruinadas”, eis que finalmente, o artista plástico moçambicano Butcheca, terminou a reconstrução das “Ruínas do Passado”. No entanto, apesar de presentemente ter de se recuperar das conotações de demente de que foi vítima, só a beleza das suas obras pode revelar a grandeza do criador!

Moisés Ernesto, ou simplesmente Butcheca, é um artista moçambicano muito familiar não somente aos apreciadores nacionais de artes plásticas, como também do exterior.

Depois de ter exibido em 2010, a mostra “Chauffeur – o motorista do Butcheca”, eis que muito recentemente regressou para mais uma exposição individual. Desta vez, para resgatar e reconstruir os desperdícios do passado. É com esta espiritualidade que o criador decidiu reaparecer com as “Ruínas do Passado”.

Composta por obras telúricas, artesanais e de construção de parede (entre outras tridimensionais) em “Ruínas do Passado” o artista não somente se propôs a emprestar cor e vida – através do seu saber artístico – às paredes da galeria do Centro Cultural Franco-Moçambicano, em Maputo, mas, acima de tudo, abrilhantar a vista dos apreciadores da arte contemporânea. E é isso que as suas obras fazem continuamente. Ou pelo menos até ao dia 20 de Agosto, altura em que a mostra encera.

À margem da exposição, @ Verdade manteve uma conversa com Butcheca, esta personagem que milita na arte há um bom par de anos a fim de trazer, em linhas gerais, a história da reconstrução das “Ruínas do Passado”, desde quando as obras não passavam de mera ideia.

Segundo o artista, a iniciativa da criação das 19 obras que actualmente constituem as Ruínas foi concebida em 2010. Na altura, e no contexto da exiguidade (ou carestia) de materiais para a produção da arte com que alguns artistas se debatem no país, Butcheca aproveitou-se do pavimento da galeria do Núcleo de Arte – feito de madeira (então, arruinada pelo tempo) – que estava a ser trocado. Mas isso (só) não bastou.

Como Butcheca é um artista multifacetado e um cidadão amigo do ambiente, movimenta-se de bicicleta. Sucede, porém, que em certa noite, depois de recorrentes idas e vindas, o seu meio de transporte danificou-se (com um ano e meio de uso). Contudo, o artista não se deixou intimidar e deu outro destino ao bem que perdeu.

A bicicleta seria, então, destinada a um fim ulterior: “a produção de obra de arte”. Como tal, dela surgiu o “malabarista”, uma obra que possui entre outros materiais (metálicos) arames e cerca de 6000 caricas de recipientes de refrigerante.

Estavam criados os fundamentos para a reconstrução das “Ruínas do Passado”. Muito em particular porque para Butcheca, apesar de “o passado ser tudo o que passou, podemos viver com o mesmo, sem atritos, no presente. Reconstruindo-o!” Afinal, “o presente é obra do passado”.

E mais: “Quando comecei a trabalhar, os meus colegas não acreditavam que a reconstrução das “Ruínas do Passado” seria possível. Foi difícil”, conta Butcheca que acrescenta: “mas fui insistindo até que, algumas pessoas, apercebendo-se da importância do trabalho, começaram a ajudar-me. Tive de fazer um acordo com alguns revendedores de cartões de crédito de telemóvel para que enquanto faziam o seu negócio, recolhessem as caricas, de maneira que seriam pagos pelo trabalho”.

Conotado com a demência

Ora, “antes de contratar alguns apoiantes, eu, pessoalmente fiz o trabalho – o que me valeu o rótulo de demente, por parte de determinadas pessoas. Não desisti”. Da tenacidade expressa não somente surgiu a obra “malabarista”, como também se criou a “chibalacatsi” – uma figura feminina que nos recorda a imagem de Jesus Cristo crucificado.

Na verdade “chibalacatsi” que equivale a fisga – em português – resulta da combinação de pouco mais de 1000 latas de refrigerantes recicladas. A prefigurar uma fisga de borracha, ainda que com uma mulher crucificada, a obra não somente nos lembra alguns aspectos do maior homem que já viveu, como também, e acima de tudo, representa a projecção do passado para o presente.

Com alguns rastos de cristianismo, a mostra é uma metáfora da máxima Bíblica segundo a qual os homens “terão de forjar das suas espadas relhas de arado, e das suas lanças podadeiras”.

No exposto, o autor conta que paralelamente ao projecto da transformação das armas em enxadas (que vigora nas artes plásticas) – concebido no período pós-guerra civil dos 16 anos – desenvolve a iniciativa do reaproveitamento (reciclagem) do lixo que nós, a sociedade, produzimos.

E fundamenta: “se o homem não recolher o lixo que produz quem o pode fazer (e o tem feito geralmente) são os ratos. É por isso que urge transformar o desperdício de passado em algo útil”.

Muita literatura à mistura

“Mesmo que desprovidas de palavras escritas, as obras de arte possuem poesia. Por isso, penso que há uma ligação muito forte entre a poesia e as artes plásticas. Como tal convidei Jaime Santos e Ana Lúcia para recitarem alguns textos poéticos”. Refira-se que o texto dito por esta última são as palavras faladas por Butchecaque Ana Lúcia teria registado.

Mas a fusão das artes plásticas à poesia dita e escrita não para por aí. Criou-se um projecto para a iniciativa. Por isso, “penso que daqui por diante, cada obra que eu criar terá que ser acompanhada por um poema. A leitura é uma prática muito importante na vida do ser humano. É um acto de coragem. Ela constrói o homem, visando a sabedoria”.

Lutar pela subsistência

Durante os dois anos em que se criaram as obras para a exposição “Ruínas do Passado”, o nosso interlocutor conta que uma parte delas era destinada ao comércio para suster as despesas do projecto. Fizemos um paralelo à tela “vendedeiras” exposta em mostras anteriores que metaforiza cabalmente o dia-a-dia da maioria dos moçambicanos em batalhas de sobrevivência.

Em relação ao tópico, o artista que diz admirar as pessoas que contornam os caminhos ínvios da criminalidade para – mesmo nos trabalhos mais humildes – garantir o seu auto- sustento afirma: “O quadro `vendedeiras de amendoim´ expressa a realidade do quotidiano da nossa sociedade, em que temos inúmeras pessoas que garantem a sua sobrevivência na base de negócios desta natureza.

É claro que fazem-no em lugares impróprios, porque é de lá onde contraíam inúmeras doenças devido ao estado sanitário local. De qualquer modo, fico feliz com estas pessoas, muito em particular, porque admiro gente desta índole. Pessoas decididas a viver sem fazer maldade a ninguém, mas garantindo a sua sobrevivência”.

Calado

Entretanto, porque o sistema social em que vivemos nem sempre nos possibilita expressarmo- nos do jeito que almejamos, encontramos no seio do espólio artístico de Butcheca a obra “Calado”.

Que pena: “o calado é alguém que tem muito para dizer à sociedade. Ora, sabendo que ao dizerem-se certas coisas fora daquilo que as pessoas padronizaram, ainda que se tenha razão – a sua articulação pode ofender algumas pessoas pela dificuldade que se tem de compreensão e percepção – o normal é que surja por parte da sociedade um comportamento hostil.

Isola-se do mundo, fala consigo mesmo, reflecte sobre a sua vida sem se misturar com os outros”, conta o artista referindo-se a tal escultura de um rosto humano que se afigura como se tivesse sido silenciado pelo sistema.

É por essa razão que acabamos por desaguar no tema da liberdade. Neste campo, o artista sente-se pouco cómodo. Senão leiamos: “vivendo o mundo das artes plásticas tenho procurado encontrar alguma liberdade. Mas ela ainda não é total. Nós, os artistas temos que ter a liberdade de nos expressarmos sobre os aspectos sociais, reais, não correctos para podermos educar e construir a sociedade”. Afinal, “o artista é um educador, um professor para a sociedade”.

Arte contemporânea

No cômputo geral, as artes visuais têm registado um desenvolvimento assinalável no país. Mas mesmo assim, Butcheca insiste que “apesar de ser algo simples e do nosso quotidiano, ainda é difícil perceber o contemporâneo.” Isto faz algum sentido, sobretudo quando se recorda que “a arte que tenho feito é muito complicada, porque não é comercial. Inversamente a isto, ela será de fácil percepção e comercial para quem gosta e a entende”.

“É um estilo de arte muito diferente – para a qual os moçambicanos ainda não despertaram. A arte é vasta. Não se limita a um quadro em que a gente coloca uma mulher com bacia na cabeça e um bebé nas costas a retratar o sofrimento”, esclarece.

No campo onírico – que caracteriza as suas criações – Butcheca vagueia, viaja pelo espaço sideral, volta à terra, mas nunca fala do sofrimento. Não é obra do acaso que sem descurar o tema do passado recorda-se de que “já sofri muito quando era criança. Tenho coisas esquecidas para trás que representam muito para a luta pela criação de uma vida alegre e saudável para qualquer cidadão. A minha arte não é comercial. Sou africano, mas não represento nas minhas obras o sofrimento. Busco em todas as minhas acções alegrar a outros”, finaliza.

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