Trata-se da trajectória de um homem que viveu ao deus-dará nas artérias da capital, comendo em contentores de lixo, percorrendo longas distâncias a pé e dormindo ao relento em lugares onde, por acaso, a noite o surpreendia.
A aversão a água, a relação íntima com a imundície e a tristeza vincada no seu rosto nos dias em que era doente mental, deixaram-no mais velho do que realmente é. A sua idade não condiz com a aparência.
Tem 39 anos, mas a face enrugada dá-lhe, no mínimo 45, um retrato que herdou dos tempos em que ralava nas ruas do grande Maputo. Não obstante ter passado por crises mentais, Rodrigues Mateus tem gravados na memória, os vários momentos da sua trajectória aqui e na África do Sul, onde sempre sonhou trabalhar. Dessas lembranças, contou-nos que tudo começou em 1998 quando voltou pela primeira vez daquele país.
“As condições de trabalho na RSA não eram das melhores, penso que foi por isso que os sintoma de mal-estar despontaram”. Nessa época, foi submetido a tratamentos tradicionais por via dos quais recuperou e, algum tempo depois, retornou ao seu posto de trabalho na terra do Rand. No entanto, alguns tempos depois, voltou a ficar doente. Por isso, decidiu regressar às origens onde, segundo diz, experimentou os dias mais negros da sua vida que cessaram em 2008 quando foi recolhido para o Hospital Psiquiátrico de Infulene. Desses tempos, ficou-lhe a nostalgia das duras fases por que passou na rua.
“As minhas refeições provinham do lixo, comia toda a podridão que por lá encontrava. Sempre ia passear a pé na Matola e dormia ao relento. Muitas vezes no mesmo lugar onde fazia as minhas necessidades biológicas. Apesar de tudo, os meus familiares sempre me dedicaram atenção e fizeram de tudo para zelar por mim, mas eu preferia na rua a ficar em casa”, lembra.
Recolha da população de Rua
Tratase de um plano do ministério da saúde que visa entre outros objectivos, a diminuição de delinquentes e pessoas que vivem na rua. O projecto é desenvolvido em parceria com o Ministério do interior, concelhos municipais de Maputo e Matola abrangendo toda a província de Maputo. O plano consiste na recolha, tratamento, reabilitação e reinserção social da população de rua. As actividades de recolha são feitas nas quintas-feiras de madrugada por equipas compostas por técnicos de saúde, psicólogos e agentes da polícia. Os doentes são, depois, levados para o Hospital Psiquiátrico de Infulene.
Aquelas actividades arrancaram em Agosto de 2008. De lá para cá, ao nível da cidade de Maputo, foram recolhidos pouco menos de 200 pacientes e reintegrados perto de 100 antigos doentes mentais. Apesar dos esforços empreendidos, o projecto tem registado alguns constrangimentos, a maior parte dos quais provém da falta de colaboração das famílias. Muitas vezes, após o tratamento e reabilitação, há dificuldades na reinserção social dos pacientes. Ao que tudo indica, as famílias rejeitam os seus parentes.
Segundo se diz, essas atitudes são, em parte, motivadas por preconceitos, medo e questões culturais. A título de exemplo, casos há de pessoas que antes de ficarem doentes eram financeiramente desafogadas mas, quando entraram em crise, os familiares fizeram uso indevido dos seu haveres. Logo, assim que recuperam e querem retornar à casa, a família impede. Por via disso, muitos pacientes continuam a viver no hospital psiquiátrico mesmo depois de terem sido tratados e reabilitados. Essas pessoas trabalham fora, mas no final do dia voltam ao hospital, que involuntariamente se tornou a sua casa.
Remar contra a maré
Como beneficiário do projecto, Rodrigues pertence ao conjunto de doentes mentais recolhidos em 2008 nas ruas da capital. Do seu grupo vários foram reabilitados e hoje convivem lado a lado com os seus familiares. Desse modo aconteceu consigo. Após seis meses de tratamentos e reabilitação, regressou à casa graças à ajuda dos programas de reinserção social levados a cabo pela Associação Vangani Va Infulene (AVVI).
Agora tenta a pouco e pouco remar contra maré para vencer a vida através da única coisa que desde sempre soube fazer: ser pintor e bate-chapas auto em oficinas de reparação de automóveis. Vive no bairro Minkadjuine com a mãe e os seus dois irmãos. Acorda todos os dias para mais uma jornada laboral, das 7 às 15 horas, numa oficina algures no bairro da Malhangalene. Para si não há razões de queixa, por isso acredita que tudo vai acabar bem. Entretanto, dos seus colegas ouvimos alguns depoimentos. Muitos testemunharam a eficiência e o profissionalismo com que encara o trabalho.
“Cá entre nós o homem comporta-se bem. A cada dia se nota-se alguma evolução” disse um deles. “O caso dele depende do tempo. Penso que daqui a mais três meses voltará a ser como antes, um pintor completo. A forma como encara as actividades mostra que em tempos foi um bom profissional”, rematou o outro. Durante o tempo em que está naquela oficina, Rodrigues trabalha em regime de estágio. E está há um mês. Volvidos três meses, dependendo da sua prestação, será ou não admitido.
Quanto ao visado, ele afirma: “Gostaria de ficar aqui, porque com isto me ocupo e ganho algum dinheiro. Mas se não der certo vou tentar a sorte noutras paragens. Assim acredito que jamais voltarei a viver na rua, a comer no lixo e a dormir ao relento como aconteceu nos últimos anos”, disse a terminar.