Se a conceituada escritora moçambicana Noémia de Sousa fosse viva, este ano (2011) completaria qualquer coisa como 30 mil dias de uma vida dedicada à luta pela liberdade. Porém, volvida quase uma década do desaparecimento físico daquela que é considerada mãe dos poetas moçambicanos, a sua obra, Sangue Negro, continua a inspirar as pessoas para um permanente exercício de cidadania…
Quisemo-nos recordar de Noémia sob um ponto de vista muito ténue – o das relações humanas. Muito em particular, nas de complementaridade em que os homens, recorrentes vezes, assumem posições contrastadas pelo poder em que um procura explorar o outro e, até certo ponto, em seu prejuízo, como aconteceu na época colonial.
Escreve a Noémia: “Patrão, patrão, ó meu patrão! /Porque me bates sempre sem dó, / com teus olhos duros e hostis/com tuas palavras que ferem como setas, /com todo o teu ar motejador/ por meus actos forçosamente servis/ e até com a bofetada humilhante da tua mão? (…) / (Será o ter eu nascido assim com esta cor?) ”
Estas e outras palavras contidas em “Sangue Negro”, obra poética de Noémia de Sousa, que com uma tiragem de dois mil exemplares foi, recentemente, reeditada e publicada pela editora “Marimbique”, há mais de meio século, despertavam a mente adormecida do povo moçambicano (e não só) para a luta pela sua liberdade. Algumas correntes literárias – no espaço nacional – fundamentam que foi tal escrita encantadora que lançou as (primeiras) bases ideológicas do que seria a futura nação moçambicana.
Nos dias que correm, a publicação da obra de Noémia de Sousa destina-se não somente a satisfazer a grande apetência da juventude em conhecê-la e consumir o seu pensamento, mas, acima de tudo, a auxiliar os moçambicanos na resposta aos desafios com que se debatem, como afirmam os escritores Nelson Saúte e Francisco Noa.
Uma autora que se confunde com a obra
Falar da Noémia de Sousa é falar do “Sangue Negro”, “ao mesmo tempo que falar do ‘Sangue Negro’, é falar da Noémia. A autora e a obra confundem-se completamente. A escritora teve um percurso que tem muito a ver com o que a sua poesia representa.
Mas penso que a sua poesia representa a nossa memória literária, ao lado de figuras como Rui Knopfli, Rui Nogar, Orlando Mendes (…) que são personalidades que fundaram e fundamentaram o que actualmente é a literatura moçambicana”, afirma Francisco Noa, um dos escritores moçambicanos que conviveu com a autora.
Ora, eles eram muito jovens porque Noémia de Sousa, por exemplo, escreveu entre 1948 e 1951. Como tal, “tiveram o mérito de dotar a sua poesia de uma grande qualidade estética, de grande profundidade ideológica, mas, acima de tudo, de uma grande profundidade temática, no sentido de que quando a obra de Noémia de Sousa surge – no período colonial e no meio do respectivo sistema – não era uma poesia que tencionava somente opor-se aos padrões estéticos da época, mas também a uma certa forma de pensar e de olhar para os africanos”.
A consequência imediata – da perspectiva poética e ideológica destes autores – é que“alteraram a forma de olhar para os moçambicanos, bem como os africanos no geral, antecipando a construção do que hoje é a nação moçambicana”.
Mas em que aspecto se encontra a moçambicanidade no caso particular da obra de Noémia de Sousa? “Muito simplesmente na relação que ela/eles tinha(m) com aquela terra. Uma terra colonizada que, na essência não era Moçambique, mas Portugal. A partir do momento em que eles começaram a usar o adjectivo ´moçambicano`. A partir do momento em que começam a fazer referência às pessoas, às línguas, aos valores culturais de Moçambique, criando as primeiras bases de um novo ´Estado-nação`, Moçambique”, comenta.
Estimula a cidadania
Francisco Noa conta que, em certa ocasião em Portugal, perguntou a Noémia a razão por que, tendo escrito as suas obras entre 1948 e 1951, depois de sair de Moçambique para Portugal parou de produzir literatura, ao que Noémia lhe respondera, nos seguintes termos: “Quando saí, perdi o chão. E ao perder o chão, perdi igualmente a motivação para escrever”.
Relativamente à pertinência da obra, “Sangue Negro”, perante os desafi os com que Moçambique se confronta, Noa opina que, além de Noémia ser uma referência incontornável para os jovens (que actualmente encontram na literatura uma fonte de inspiração), os seus escritos são relevantes, na medida em que nos estimulam para o exercício da cidadania.
Noémia de Sousa escreveu numa época histórica complicada – o que lhe valeu experimentar situações, igualmente, complicadas como a prisão. No entanto, em nenhum momento ela vacilou.
Por isso, “o grande desafio que actualmente temos, não somente do ponto de vista nacional, como também global, é o exercício da cidadania. Nesse aspecto Noémia é um excelente exemplo”.
Uma figura singular
Falando no dia da publicação do livro, o director da Marimbique, Nelson Saúte, não somente imortalizou a autora através do livro, como também parecia não conceber a ideia de que Noémia de Sousa morreu. Estávamos no dia 20 de Setembro. E dizia ele: “Faz, hoje, 85 anos”. Ora, Noémia de Sousa encontrou a morte no dia 4 de Dezembro do ano 2002, em Lisboa – Portugal. Ainda jovem, jornalista activa, teve uma colaboração em “O Brado Africano”.
Aliás teria sido no intervalo dos anos que colaborou no Brado que escreveu tudo o que se conhece como sua grande obra, influenciando os poetas e o povo africanos. “Ela é a primeira figura a escrever poesia de expressão moçambicana. Já havia poetas antes, mas não possuíam esta marca (singular) da moçambicanidade”, testemunha.
Perseguida pela PIDE, acabou por se exilar, em 1952, em Portugal, o que fez com que, ao longo dos anos seguintes, não escrevesse mais. Como consequência, derivou que, apesar de a sua obra existir em antologias e ser apreciada em diversos países, ainda não houvesse nada publicado em livro.
Isto fez com que há dez anos – quando ela fazia 75 anos de idade – se publicasse a primeira edição do “Sangue Negro” que esgotou imediatamente. “É por essa razão que – aproveitando a grande apetência que os jovens têm de conhecer o seu trabalho – decidimos colocar a sua obra no trânsito dos leitores”, relata Saúte.
A referida obra, já disponível no mercado, contém“uma nova introdução, um portefólio e um novo conceito gráfi co”. Aliás, com o “Sangue Negro” a editora Marimbique inaugurou uma nova colecção denominada “O Brado Africano” que se destina à reedição e publicação de obras dos autores da geração da Noémia de Sousa e José Craveirinha, muitos dos quais já pereceram.
Rui Knopfli, Orlando Mendes, José Craveirinha e Rui Nogar, por exemplo, são outros autores que no futuro “irão ver” as suas obras republicadas pela Marimbique. Começando por Nogar – autor de “Nove Horas” e “Silêncio Escancarado” – esta última que será reeditada e divulgada a dois de Fevereiro, altura em que o autor completaria 80 anos caso fosse vivo. “Vamos imortalizar os fundadores da literatura moçambicana cujas obras nos marcam sob o ponto de vista de identidade”, salienta Nelson Saúte.
Reconstruir a liberdade
Que funcionou como um libelo acusatório contra uma situação – a colonial – não aceitável, a poesia da Noémia de Sousa inaugurou o processo de emancipação do povo moçambicano.
Ela é, como assegura o professor Calane da Silva, uma poesia actuante literária, ideológica e culturalmente. Uma poesia cujas facetas do Pan-africanismo, e da negritude mantêm-na viva em todos os sentidos. Uma autora cujos posicionamentos políticos e sociais – naquela época – fizeram crescer em muitos de nós um sentido de responsabilidade.
Convenhamos então, que, de facto, Noémia de Sousa criticou “todos os aspectos violentos do colonialismo, mas soube distinguir durante o regime opressivo o povo do sistema colonial português”.
De qualquer modo, e porque a liberdade que daí derivou não foi totalmente conquistada, a autora admoesta-nos para que “avancemos mais na sua conquista”. Afinal, “a liberdade não somente significa hastear uma bandeira, cantar um hino. A liberdade é muito mais profunda e a sua conquista é permanente. Esta é a mensagem que Noémia de Sousa nos traz em “Sangue Negro”.