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Paz vs guerra: que pontos de vista?

Paz vs guerra: que pontos de vista?

Enquanto o discurso oficial do Governo moçambicano clama pela manutenção da paz e o combate à pobreza – opostamente a isso – um outro grupo social (enorme) dá indícios claros de que a paz, esta condição indispensável para o desenvolvimento do país, pode estar ameaçada.

Por estas e, muitas outras razões, descrever o clima da vida contemporânea em Moçambique torna-se, até certo ponto, uma tarefa árdua. Ou seja, afi rmar se, de facto, se trata de paz, de confl ito ideológico ou então de “paz armada”.

É sobre estes tópicos que Branislava Stonjanovic (ou simplesmente Brana), Gonçalo Mabunda e Mauro Pinto, três artistas plásticos contemporâneos associados por um passado comum – a guerra – assumiram, muito recentemente, o seu papel social (de cidadãos e de artistas) para, através da arte, denunciarem os seus “pontos de vista”.

Não obstante, além de conferirem um ar de belo, vida e cor à galeria, os pensamentos que se esparramam, em mostra colectiva, podem ser lidos e interpretados no Centro Cultural Brasil-Moçambique, em Maputo, até meados do Outubro em curso.

A tripla dos expositores encontra na arte um refúgio, um espaço para meditar nas crises sociais, bem como nos seus êxitos, conversámos com Brenislava Stonjanovic, artista de origem sérvia.

Quando o passado inspira continuidade

Há vezes que, nalgumas pessoas, o passado condena. No caso da Brana, em relação a Gonçalo Mabunda e Mauro Pinto, o mesmo se pode dizer, porém, com uma atmosfera de orgulho. Há cerca de dois anos, os artistas trabalharam juntos em mostras colectivas, com destaque para “Karl Marx 1835”. “Foi uma experiência, simplesmente boa”, afirma Brana em jeito de recordação.

Como tal, “concebi a ideia desta mostra ‘Pontos de vista’ como forma de, através das diferentes expressões artísticas (pintura, fotografi a e escultura), revelar as diferentes maneiras de fazer arte”.

No entanto, além de colocar uma nova produção artística ao dispor do público e, por essa via, revelar como uma mesma técnica pode ser aplicada de maneiras diferentes em função do artista; exaltar a ideia do pensar de forma diferente, esta mostra tenciona alcançar um objectivo nobre: “retratar Moçambique – mergulhado na grotesca situação da guerra, em prol da paz – das mais diversificadas formas”.

Um aspecto vulgar entre estes artistas que acabam por encontrar na questão belicista um passado comum é que os menos de três anos de convívio e de amizade inspiraram Brana a reconhecer que “apesar de eu ser sérvia e viver em Moçambique, a minha arte reflecte, até certo ponto, esta (con) vivência. Mauro e o Gonçalo tiveram a sua história de luta armada de libertação nacional, bem como a guerra dos 16 anos. Por outro lado, na Sérvia (também) tivemos situações de guerra civil”.

Eis a razão por que a guerra, este fenómeno mortal, acaba por ser um ponto comum no seio do trio que estimula uma séria reflexão. O artista plástico moçambicano, Gonçalo Mabunda, explora – como nos acostumou – restos de material bélico para fazer arte. Brana, ainda que numa perspectiva muito onírica, revela a mesma preocupação.

Temperamentos da guerra

Curiosamente, numa altura em que o mundo – Moçambique não é excepção – engendra todos os mecanismos para refrear ou até ofuscar a guerra, no “País da Marrabenta” os artistas plásticos resgatam o tema, nele se concentram e refl ectem.

O facto é que literalmente “não estamos em conflitos armados. No entanto, temos a sua influência, sentimo-la todos os dias. Tal traduz-se, por exemplo, não somente na enorme quantidade de armas que (ainda) se encontram espalhadas pelo país”, mas também na ameaça de determinadas formações políticas neste sentido.

Aliás, diga-se, o contacto que, muito recentemente, se estabeleceu com a pintora sérvia deixou claro que ela conhece perfeitamente os píncaros de confl itos armados porque, segundo diz, “nos meus pensamentos existem lembranças, duras cicatrizes da guerra sobre as quais refl icto”.

Apesar de possuir influências de vivência positivas, como, por exemplo, “a passagem pela Itália, onde estudei, e agora, de Moçambique, onde vivo, prevalece em mim uma experiência seca da guerra. Isto faz com seja difícil deixar de pensar que existe a guerra”.

Um adereço simbólico

No que concerne à técnica, Branislava Stojanovic iniciou-se nas artes plásticas, como era de esperar, explorando algumas técnicas tradicionais, como aguarela, acrílico, por vezes, técnicas mistas, até que no seu processo evolutivo descobriu que podia explorar igualmente fragmentos da natureza, bem como material reciclado.

Aliás, sobre este último aporte (material reciclado) afi rma que “não gosto da ideia de que o Homem vai cobrir o planeta com o lixo. Não deito nada, conservo tudo incluindo o lixo, porque sempre tenho uma ideia (clara) de que vou utilizar tais materiais para produzir arte”.

Exceptuando o belo que se encontra agregado às obras, os artistas não se atêm apenas à questão da produção de objectos artísticos, realizam o papel de educador social inclusive em prol do meio ambiente.

Recuperam, por exemplo, um material usado, inutilizado – mas que, quando mal conservado, é prejudicial ao meio ambiente – conferindo-lhe (melhores) utilidades. Brana chama a atenção pela forma como adereça a capulana, este tecido simbólico para a mulher moçambicana, nas suas obras.

“A capulana é um adorno tipicamente moçambicano que eu o interpreto como um utensílio anti-guerra. Afinal, no dia-a-dia as mulheres moçambicanas usam-na como instrumento nas suas batalhas, livrando as suas famílias das algemas da pobreza”. Por isso, “é um material simbólico e importante para o país. Estou feliz pelo facto de ter descoberto a possibilidade de trabalhá-la e produzir arte”.

Arte contemporânea

Antes de mais, é preciso ter em mente que ainda que todo o mundo possa produzir arte contemporânea, ela adequa-se à realidade local de cada país ou continente onde surge. O facto deve-se não somente à diferença das experiências ou vivências dos artistas, mas acima de tudo à mentalidade que cada um possui em relação ao cenário social sobre o qual a sua criação irá gravitar.

Na especificidade, a arte contemporânea africana, sobretudo a moçambicana, é rica em elementos que a tornam ímpar quando comparada com a do ocidente. Ela retrata a realidade específi ca de cada país, as preocupações do artista, respondendo, até certo ponto, aos anseios de determinado público. No entanto, pouco a leste de determinados elementos da cultura/arte tradicional – o que a enriquece.

Por exemplo, a arte contemporânea moçambicana é impressionante porque é dotada de algum calor, alguma alegria, cores vivas e bonitas. Isto traduz o ânimo do povo moçambicano.

Afinal, “apesar de que os moçambicanos abandonaram há alguns anos a dura situação colonial, a inquietante guerra civil, conseguem ser um povo divertido e que sabe fazer a festa – isto significa saber viver. Quando os artistas falam nas suas obras sobre a guerra, o colonialismo, ou acerca de outros aspectos ruins decorridos no país, não se esquecem de agregar determinados elementos simbólicos que traduzem alguma alegria”, diz.

Por isso, “gosto desta arte porque é rica em termos de vida”. Enquanto isso, a arte contemporânea realizada nos outros países é diferente. Por exemplo, a produzida na África do Sul é dotada de elementos que traduzem uma enorme distância entre as realidades dos dois países ainda que sejam vizinhos.

Refugiada na arte

Presentemente com 28 anos, Branislava recorda que durante a infância foi uma pessoa acanhada. Por isso, pouco comunicativa. Foi nesta circunstâncias, na luta pela exteriorização do que lhe vinha no ego, que descobriu que podia fazê-lo mesmo sem utilizar a palavra. Eis que nasceu a pintora.

“Quero transmitir, através da minha arte, os meus pensamentos, sentimentos e dizer determinadas mensagens que as pessoas dificilmente dizem. Transmitir uma emoção. Motivar as pessoas para a acção do bem, ou mesmo induzi-las a pensar sobre um assunto retratado nas obras”.

Concebe a arte como uma brincadeira. Uma busca incessante pela felicidade. “Isso não significa que a minha arte seja sinónimo de egocentrismo de quem a cria, porque a mesma precisa de um público para apreciá-la. Ou seja, a arte não faz sentido quando apartada do público. Até porque o artista precisa – mesmo que por uma questão narcísica – de que a sua arte seja apreciada”.

Tendências artecidas

Entretanto, se na cultura tradicional os artistas produziam de forma desinteressada com o intuito de atravessar os séculos – a intemporalidade artística –, o mesmo não acontece na cultura moderna. Afinal, na actualidade, com a industrialização dos objectos culturais, deriva a produção em série das obras de arte que entraram na lógica do mercado – produzir para vender.

O homem, que há cerca de dois séculos era apenas apreciador de arte, viu-se convertido num potencial cliente/comprador. É sobre esses elementos – segmentos metodológicos, de produção, distribuição e consumo – que o artista é, agora, impelido a pensar.

Agindo contrariamente ao exposto, Branislava conta que “a minha forma de fazer arte não difere das formas aplicadas pelas crianças. Muito em particular porque as crianças fazem arte (ainda que poucas vezes se conceba como tal) a brincar, despreocupadas, contrariante aos adultos que depois de produzir pensam (também) na questão do material, do dinheiro e da venda. É uma arte feita com alguma responsabilidade”.

Ora, opostamente a isso, “eu penso que todos os artistas se quiserem fazer arte pura em algum momento da sua criação precisam de deixar de ser adultos. Encarnarem a mentalidade das crianças, para que possam transmitir alguma emoção pura, bonita e alegre. Não vituperada pela questão do dinheiro”.

Portanto, ser artista acaba por ser um confl ito que contrapõe aquilo que o artista quer produzir como puro com aquilo que deve fazer, como adulto em função das suas necessidades humanas. E a arte é colocada em causa.

Pior ainda

Em tudo isso engana-se quem pensa que termina por aí. A praia da arte tem outros temperamentos. É que é neste contexto que surgem “personalidades de bom gosto” que no mercado artístico ditam as regras da produção artística. Pessoas que ainda que de forma indirecta e implícita defi nem as regras a que a produção de objectos de arte deve obedecer, seguindo-se um paradigma ou uma tendência pré-estabelecida.

Infelizmente, “esta perspectiva não é correcta porque concorre para que, de facto, se criem quadros encarecidos”. Afinal, feitos por artistas famosos, mas que ao público tais obras não dizem nada”. A arte deve ser pessoal, não se deve trabalhar em função das tendências do outro. “Penso que ultimamente está a ser difícil porque o artista sofre inúmeras infl uências – políticas, metodológicas, dos críticos de arte – presentes no espaço social”.

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