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Reencontro III: Arte que expele verdade

Reencontro III: Arte que expele verdade

Engana-se quem pensa que, na capital, o elevado custo do livro e a fraca cultura de leitura são os únicos fenómenos que ao contrário do adágio popular segundo o qual “criança que não chora não mama”, há 20 anos, um grupo de “madjermanes”clama pelos seus direitos, mas até o momento não teve nenhuma resposta. Sem se dar por vencidos, colocaram em montra obras de pintura, cerâmica e escultura.

Assim, resume-se o sentimento de um quinteto de artistas visuais, nomeadamente Dito, Dalito, Zeferino, Macandza e Costa, regressados (em 1990) da extinta República Democrática da Alemanha (RDA) que, muito recentemente e, de forma surpreendente, com um pendor artístico enciclopédico, inauguraram a terceira edição da exposição “Reencontro”.

A mesma esteve patente, até o dia 8 do mês em curso, no Centro Cultural Franco-Moçambicano. A mostra, designada “Reencontro”, é uma alusão ao passado comum na República Democrática Alemã.

Apesar de, em “Reencontro III”, exibirem os mais ternos e nobres valores do amor – liberdade, fraternidade e solidariedade entre os povos -, os criadores mal conseguem abrigar a ira e a revolta que possuem nas entranhas criativas.

E não é obra do acaso, afinal o “Governo moçambicano não somente chocou a nós – os regressados da Alemanha – como também chocou o mundo. Repare que estamos a reivindicar há cerca de 20 anos. Será que não é possível dar a César o que é de César?”, questiona Zeferino, o escultor que, perante a situação, em “A Vida é Pesada” e “Criança Que Não Chora, Não Mama” eleva ao mais alto nível o seu clamor.

Mas o mais displicente é que, conforme o artista, “os nossos governantes não sabem que temos filhos, os quais já são maiores de idade mas precisam do apoio financeiro dos pais. Por mais que a gente morra, os nossos filhos vão reivindicar os seus direitos”. Portanto, “o partido no poder não chocou só os regressados da ex-RDA, chocou o mundo”.

“Quando ocultamos a verdade, acabamos por ficar ocultos”

@Verdade conversou com Luís Macandza, outro artista que integra a exposição com obras de escultura em metal. Sem papas na língua, o artista revela-nos o seu estado de espírito em relação ao caminho pelo qual decidiu enveredar.

“Estamos satisfeitos superficialmente, e não na profundidade. Porque há uma lacuna – uma coisa estranha – que faz com que, nas artes, ninguém fique feliz enquanto no seu país residir”. De qualquer modo, “não posso ocultar a verdade, porque sinto que os nossos problemas só podem ser resolvidos quando a verdade for dita. Sinto que quando a gente oculta a verdade, acabamos por ficar ocultos”.

O escultor diz que o grande problema é o facto de o artista moçambicano não ser valorizado dentro do próprio país. “Somente é bem-vindo quando vier da diáspora”, comenta Macandza e acrescenta: “não é cultura do moçambicano apresentar o seu trabalho no exterior. O nosso artista só é considerado quando sai e volta. Mas, internamente, as possibilidades de singrar são cada vez mais escassas”.

Mas o artista tem a esperança de que um dia o seu trabalho seja valorizado. “Nós, os artistas, temos a certeza de que algum dia o nosso trabalho poderá valer para todos nós, os moçambicanos”.

Coleccionadores ou revendedores?

Em Moçambique, parte considerável das pessoas que se dedica à arte, vive dela. Assim, se, por um lado, a exiguidade de oportunidades de expor as obras no estrangeiro pode atrofiar os potenciais bons artistas, por outro, acarreta outros problemas. É que, segundo Macandza, uma vez não havendo muitos coleccionadores de arte, alguns artistas conceituados compram obras de anónimos, assinam e revendem-nas.

“Em Moçambique não há bons coleccionadores de arte. Ou seja, não temos coleccionadores, mas sim revendedores de arte. Os chamados grandes artistas compram obras de nós, os pequenos artistas, assinam com os seus nomes e vão vender a altos preços enquanto nós permanecemos na desgraça. Então, o nosso coleccionador é um grande artista”, comenta.

Macandza afirma que, no mundo das artes, os considerados grandes artistas não são, na verdade, grandes artistas. Segundo o escultor, os verdadeiros grandes artistas são aqueles que ficam nos bastidores. “Estes fazem obras de grande qualidade e os artistas renomados assinam, revendem e fossilizam a sua carreira”.

Diante do cenário, o artista propõe que se dê oportunidade aos pequenos artistas para sair do país, uma vez que em Moçambique não se vive de arte.

Dinâmica no tempo e no espaço

Entretanto, o quinteto que expõe em “Reencontro III” pode ter sofrido influências da pintura ocidental – o que é natural -, afinal, relacionaram-se com os artistas germânicos. De qualquer modo, as suas pinturas recordam muito as marcas da nossa moçambicanidade.

A título de exemplo, Dito – um artista natural de Maputo – explora, preferencialmente, a zona intermediária entre a cidade e os bairros suburbanos da capital do país.O facto faz com que, apesar da liberdade que actualmente o artista celebra, busque cada vez mais os temas oníricos e abstractos. A mulher moçambicana constitui o seu tema favorito.

Nas suas telas, a mulher apresenta-se simplesmente engraçada, porquanto não seja rica ou tão-pouco pobre, mas carrega, bastas vezes, um bebé nas costas. Por meio da capulana e lenço, o artista presta-lhe tributo denunciando os seus fragmentos culturais, através de elementos como a mulala – uma raiz com que se faz a limpeza oral.

Teologismo medieval

Sem estagnar no tempo, tão-pouco no espaço, Dito faz uma viagem no tempo, concretamente para a Idade Média. Não para ficar preso ao passado, mas para denunciar uma época importante da história da evolução do Homem.

“Não sei por que motivo fiz tal trabalho, mas penso que, apesar de haver muita gente que se realiza somente com os aspectos da vida contemporânea, é importante rever o passado de modo que as pessoas percebam que viemos de um lugar muito distante”.

A façanha tem mérito, uma vez que a arte não somente serve para adornar, mas igualmente para fazer o registo do quotidiano do homem ao longo dos tempos. Assim, para Dito, à semelhança dos livros, as artes cénicas (recital, música e teatro), bem como as artes visuais (pintura, cerâmica e escultura), podem servir de um material de registo passível de pesquisa.

No entanto, “apesar de ter alguma lógica, de se pintar o presente, o dia-a-dia, penso que não é mau pintar o passado. Afinal, a evolução da pintura dependeu da evolução das ciências antigas, como a mitologia e a cosmogonia”, justifica.

Sonhar com a paz

Por seu turno, Luís Macandza, que é igualmente músico, conta que na sua arte não explora ostemas estáticos. “Não almejo a essência vital do homem, como homem. Gosto de sonhar e, na diversidade dos sonhos, gosto de sonhar com aquilo que me faz bem -a paz na alma. Na alma, porque ninguém está bem financeiramente”.

Zeferino, autor de “A Vida é Pesada” – uma obra esculpida em sete anos -, preferiu terminar a conversa dizendo que “quando digo que a vida é pesada refiro-me a mim, regressado da ex-RDA, que trabalhei duro, passei dificuldades, para reunir um tesouro em casa – mas, quando regresso, alienam- -me de usufruí-lo”.

Reencontro

Além de ser a forma encontrada para celebrar o passado germânico de artistas moçambicanos, “Reencontro” é um megaprojecto artístico ainda em fase embrionária. Espera-se que no futuro agregue novas disciplinas artísticas e criadores de outros países.

Em Junho, os artistas quedão corpo ao projecto, partirão para a Alemanha, onde, além de workshops sobre arte, realizarão uma residência de criação conjunta com os artistas germânicos eas obras daí resultantes farão a réplica da mostra “Reencontro III” na Europa.

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