Se o facto de uns terem nascido pretos, pobres, em condições sociais precárias, num lugar incerto da terra, ao passo que os outros surgiram brancos, possivelmente, ricos, em melhores condições sociais – isso, no mínimo, apenas lhes torna diferentes. No entanto, porque se nos recordarmos de que, apesar das referidas diferenças, com base nas quais nem a ciência consegue provar o contrário, desprovendo uns em relação aos outros da dita dimensão , então, que se assuma que todos são homens.
Desengane-se quem assim pensa. Eles não são cães, bestas, feras, crias, bichos muito menos vândalos – como muitos cidadãos mal-entendidos e metidos à besta os consideram – mas, iguais a si, são homens. Em resultado disso, eles têm o direito à dignidade.
Não! Diante das imagens que se nos apresentam – o autor destas linhas não pode/deve querer provar-nos o contrário, a verdade é que – eles são nojentos, horripilantes, alimentam-se de lixo, são imprestáveis, marginais, talvez, na pior das hipóteses, criminosos e assassinos. Nenhuma pessoa, apresentando-se neste estado, como aquelas, pode ser honesta.
Ambos os julgamentos acima apresentados podem ter os seus fundamentos, mas se cada um deles tiver sido tomado à base de pequenos dados de natureza generalista, então, não diferem de preconceitos infundados. Os adultos, por causa da sua experiência de vida, são donos de culpas várias.
Por isso, não são um bom ponto de partida para uma análise sobre como a indiferença da sociedade – em relação às pessoas necessitadas – é cúmplice da formação e do estabelecimento de comportamentos fúteis.
Falemos do Ernesto e da Júlia* – nas primeiras duas fotos – pessoas que, se Samora Machel estivesse entre nós, as dúvidas de que são as flores que nunca murcham seriam diminutas.
A Júlia, por exemplo, pelo facto de estar num habitat em que se encontra, o qual pelas características que ostenta – além de todas as implicações possíveis e imagináveis que possui em relação ao seu processo de formação como ser humano – se responsabilizou em apagar personalidades como bonecas, creche, neca, mathakuzana, travando de forma totalmente insegura – em todos os sentidos – uma infância ancorada à mendicidade infantil. A sua vida começou completamente precária.
Sobre esta imagem, na sua visão poética, o escritor moçambicano, João Mendes, recentemente perecido, considera que “criança queria repor-te no olhar a luz da pureza no antro da crueldade, mas a palavra não o consegue”.
De qualquer modo, a pureza da incerteza do futuro das flores que nunca deviam murchar é imensa. No caso de Ernesto, o mocinho sentado em volta do lixo de que se alimenta, o nosso escritor considera que “A mãe se contorce no morrer do filho sem medicamentos”.
Por incrível que pareça, a verdade é que o Ernesto leva uma vida condenada desde a infância. Estamos diante de uma pessoa cujos primeiros dias de vida não conseguiram fecundar em si as possibilidades de a sua imaginação fértil – utilizar de determinados recursos para – transformar cubos em comboios, aviões, navios, ou mesmo latas em violas, restos de tecidos em farrapos para jogar futebol, moldando, desse modo, o homem do amanhã.
Em resultado disso, do Ernesto (não haja ilusões) não se deve esperar, no futuro, nenhum operário, maquinista, jornalista, enfermeiro, atleta, advogado, muito menos professor. A génese mostra-nos que se está a formar um homem com base em alicerces inseguros, o que irá gerar insegurança social.
As fotos que se alinham narram o percurso que a vida destes cidadãos – em condições normais, se não houver nenhuma intervenção de quem de direito – tomou até à terminação do sistema de coisas.
É por essa razão que a questão é “Que futuro é o nosso?”. Nosso porque nós é que permitimos que a vida desses compatriotas desabroche da maneira expressa. Que futuro sustentável esta realidade nos garante? Que sociedade queremos edificar quando – numa altura em que a nossa capital celebra 125 anos de existência –, indiferentes, permitimos a edificação de bairros precários?
Até quando é que nós, os moçambicanos, iremos depender de pessoas de nacionalidade estrangeira – como o italiano Roberto Galante – para resolver os problemas das nossas gentes?
E, recordemo-nos, há bastante tempo que sabemos, porque nas suas obras, desde o princípio, o escritor-mor, José Craveirinha, nos alertou para o facto de que “bichos espreitam as cercas do arame farpado. Curvam cansados dorsos ao peso das cangas e também não são bichos, mas gente humilhada”. Todos os dias, “corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos e não são cães, são seres humanos”.
A mostra integral destas fotos está parente no Instituto Camões, em Maputo, e é protagonizada pelos agentes de um laboratório de alfabetização audiovisual denominada A Mundzuku Ka Hina que está a recuperar seres humanos – cujas vidas em princípio estavam perdidas – dando-lhes oportunidades de olhar para o futuro com optimismo.
*Os nomes são fictícios
