Dois “morgueiros” – pessoas que na morgue cuidam de cadáveres – profanaram sexualmente igual número de cadáveres de cidadãs de raça branca. Quando descobertos, os indivíduos foram despromovidos. Actualmente, trabalham como jardineiros. Mas antes, Joaquim da Silva (a personagem que anima as acções da obra teatral Lá Na Morgue) havia sido despromovido do cargo de chefe do armazém de medicamentos, no Ministério da Saúde, para as funções de administrador da morgue. No nosso país, ao que tudo indica, o necrotério está a torna-rse um lugar privilegiado dos malfeitores profissionais.
A dúvida está a corromper-se. O receio é saber o que será de todos os moçambicanos no dia em que tiverem a certeza das suas desconfianças. Eles, os “morgueiros”, fazem ou não (…) com os cadáveres?
O assunto é colocado quase de forma coloquial porque é assim que em muitas conversas, no “chapa”, no mercado, ou em qualquer outro lugar frequentado por populares, é tratado. Caso contrário, esta ideia do célebre dramaturgo moçambicano, Dadivo José – o mesmo que escreveu a peça teatral Lá Na Morgue – além de não fazer sentido, seria uma pura mentira.
Em certa ocasião, “eu, Dadivo José, estando num meio de transporte público em Maputo, escutei duas senhoras a conversar. Na verdade, elas reclamavam do comportamento das pessoas que trabalham na morgue.
Uma das senhoras insistia dizendo que se o cadáver for de uma mulher bonita, os “morgueiros” – sem receio nenhum – “faziam”, ao mesmo tempo que a outra, retrucando, considerava que não podia ser verdade”, recorda-se o artista. Facto, porém, é que ainda que não se tenham feito referência ao nome do acto – abuso sexual do cadáver – o dramaturgo percebeu que aquelas mulheres se referiam ao dito acto profano.
Em resultado disso, o artista – que também é um aguçado pesquisador – fez um inquérito dirigido a alguém que trabalha na morgue, em Maputo, sobre o assunto. Chegou a uma constatação com base na qual criou uma história em que se explica que os eventos ocorridos no passado de Joaquim da Silva – uma representação social da figura do “morgueiro” – podem ter sido responsáveis pelo seu comportamento actual.
Foi desta forma que nasceu uma das mais arrepiantes peças teatrais – a que hoje, sexta-feira, 26 de Outubro, os moçambicanos terão a ímpar oportunidade de assistir em estreia no Cine Teatro África – produzidas neste começo do século XXI.
Com apenas duas personagens, Dadivo José e Milsa Ussene, a obra está repleta de cenas horripilantes, políticas, revolucionárias, críticas, delicadas – como sempre foi o apanágio da produção artística dos moçambicanos, antes de a nação se formar, para edificar o sentido de ser moçambicano.
Infelizmente, nem todos os moçambicanos têm a possibilidade de conhecer a morgue. Afinal, geralmente, o seu primeiro e último contacto é estabelecido pela morte – altura em que voltam para o local onde se encontravam antes de nascerem. A verdade, porém, é que a morgue é um dos grandes mistérios que – em resultado da morte – se instalou na sociedade.
Muito se pode dizer sobre os eventos, na verdade, peripécias que ocorrem naquele espaço que estão a ganhar uma dimensão ignóbil. Por exemplo, considera-se que o líquido em que o corpo humano, inerte, sem vida, é lavado é dotado de poderes sobrenaturais incalculáveis: “causa uma profunda sonolência nas pessoas”.
O nosso repórter sociocultural teve a oportunidade de ver a peça – ainda em processo de “cozedura”. Como qualquer obra de teatro feito por artistas moçambicanos, Lá Na Morgue é algo hilariante, causando, invariavelmente, melancolias. É triste o rumo que os homens da nossa terra estão a trilhar.
Denunciando um problema social – talvez um dos mais grotescos – na narração dramática, o “morgueiro”, Joaquim da Silva, fica frustrado porque a polícia (que descobriu o suposto poder de causar sonolência nas pessoas) passou a controlar o líquido que ele vendia aos ladrões. O pior, em tudo isto, é que na sua interpretação as autoridades só se envolvem no seu “business” porque (também) já não conseguem alugar as suas armas. “Corruptos! Todos são corruptos, cada um à sua maneira”.
De qualquer forma, “se isso é verdade eu não sei, o meu problema é a existência de tantas armas em mãos erradas. De onde é que vêm os instrumentos bélicos que propiciam a criminalidade no país?”, interroga Dadivo José que gera um questionamento sério e, enquanto o fenómeno perdurar, sempre oportuno.
Como o estimado leitor deve ter percebido, o dito líquido é literal mas igualmente pode ser a metáfora de algo que devia ser controlado pelo Governo, mas que – denunciando todos os tipos de inoperância do sistema – se encontra sob o poder de patifes.
Se o líquido possui o referido poder ou não, pouco interessa. Afinal, está-se diante de um boato que apesar disso (também) possui a sua origem e, talvez, alguma fundamentação.
Refira-se que, como se pode perceber, estas questões não estão a ser colocadas no espaço público de forma barata. Existe uma compreensão quase comum – entre os moçambicanos – em relação ao papel do Estado na garantia da segurança dos seus cidadãos:
“O Governo, através do Ministério do Interior, é a única instituição que tem poder para controlar as armas e, em dado momento, não o faz. Como (e porque) é que tais instrumentos mortais são disponibilizados a qualquer pessoa? Se eles foram adquiridos no estrangeiro, como é que entram no país? Qual é o papel do Estado moçambicano no controlo deste fenómeno?”
No seio do elenco que protagoniza Lá Na Morgue (Maria Atália, a directora artística, Dadivo José, actor e dramaturgo, e Milsa Ussene, actriz) encontra-se o músico Renaldo Jaime Cardoso, ou simplesmente Mole. Com a música deste artista, a obra revela outro tipo de motivações, atraindo a atenção do espectador do princípio até o fim do espectáculo.
É que para “o tipo de espectáculos que promovemos, a música possui um papel muito importante. Ou seja, não se trata somente de música, mas também dos movimentos dos actores – que não devem ser confundidos com dança –, incluindo a acção das suas vozes”, explica Maria Atália que fala sobre Mole, um artista que no seu repertório de acção está rodeado de vários instrumentos, dentre os quais cada um é tocado num momento apropriado criando nuances de sonoridades que agradam o espectador.
Para nós, que já vimos a peça, a sua música gera motivos cinematográficos na obra teatral. Atiça os momentos de avanços e recuos da narrativa dramática. Produz outro espectáculo dentro do grande concerto.
Entretanto, provavelmente, não exista outra questão importante a que os artistas – em cena Lá Na Morgue – se propõem responder diferente desta: Que consideração os moçambicanos – incluindo os governantes – têm pelo “morgueiro”? Descubra!
