A analogia entre o Irão de 1979 e o Egipto de 2011 é quase irresistível, mas pouco ajuda os actores e os analistas a perceber o que se passa, nem os egípcios nem os outros, a começar por aqueles a quem a memória do Xá e de Khomeini mais calafrios provoca – os americanos. O abuso da analogia serve frequentemente para escamotear a análise da realidade, induzindo as mais contraditórias respostas.
1. Podemos começar por um teste que o historiador irano-americano Abbas Milan nos propõe num artigo sobre o Egipto, em The New Republic.
“Após dias de agitação, depois de ter declarado a lei marcial em algumas das maiores cidades do país, o líder autoritário fez um muito aguardado discurso na televisão. Mostrou-se contrito. Prometeu mudança e reforma. Durante muito tempo, os Estados Unidos tinham-no alertado para a necessidade de abrir o sistema político – mas eram olhados publicamente como o seu principal apoio.”
Mais tarde, frustrado o uso da força militar para acalmar a situação, os EUA fizeram “declarações ambíguas”, apoiando o desejo do líder de restabelecer a ordem e também o avanço da democracia, advertindo que o uso da força não resolveria os problemas do país. “Aproveitando o subsequente caos, os islamistas radicais, mascarados de democratas, aproveitaram a oportunidade para tomar o poder e erradicar o movimento democrático em benefício da tradição e da teocracia.”
Avisa Milani: “O país de que estou a falar não é o Egipto de 2011 mas o Irão de 1979.”
Tira duas conclusões. A primeira é uma advertência aos democratas egípcios: não podem ignorar a História e deixar-se iludir pelos radicais da Irmandade Muçulmana. “Se e quando Mubarak cair, não podem permitir que as mais brutais e radicais forças triunfem no caos que se seguirá.”
A segunda é de outro tom. Irão e Egipto foram precursores na região. “A chegada da liberdade ao Egipto colocaria os mullah na defensiva. Longe de ser uma repetição de 1979, a sublevação egípcia pode ser parente da [revolta iraniana] de 2009. Tal sugeriria que as placas tectónicas da região se estão a deslocar – do despotismo e do dogma para a democracia e a razão. Inch Allah!”
2. A analogia é também uma arma de arremesso. No domingo, o conservador The Washington Times titulava assim o editorial: Obama na senda de Jimmy Carter. Seriava as analogias entre o comportamento de Obama na crise egípcia e o de Carter em 1979.
O israelita Aluf Benn escrevia ontem [terça-feira] no diário Ha”aretz: “Obama ficará na História como o Presidente que perdeu o Egipto”, tal como Carter ficou como “o Presidente que perdeu o Irão.”
A analogia é ilusória. The Washington Times explica que Obama perdeu o controlo da situação e que os democratas egípcios querem uma aliança suicidária com a Irmandade Muçulmana. Apela à imediata redução do pessoal diplomático americano no Cairo para evitar uma “crise de reféns” como a de Teerão em 1979.
É outra a leitura de Benn: o que as revoltas na Tunísia e no Egipto mostram é que “os EUA pouco podem fazer para salvar os seus amigos da cólera dos seus cidadãos.” Haverá inevitáveis mudanças geopolíticas, que preocupam americanos e israelitas.
E conclui, ao contrário da generalidade dos analistas israelitas: “Mas não se pode partir do princípio de que os sucessores de Mubarak serão clones dos líderes do Irão ou que prosseguirão uma política radical anti-americana.” Por que não uma política mais independente, como a de Erdogan na Turquia? “Pode funcionar também com o Egipto.”
3. Um dos eixos do debate americano é evidentemente o papel da Irmandade Muçulmana. Estaria enfraquecida e dividida no início das manifestações. E, ao contrário do Irão de 1979, os fundamentalistas não têm tido a iniciativa.
Mas, se a política não é uma ciência exacta, as situações revolucionárias são a quase absoluta indeterminação. No caso extremo de o Exército – a instituição central do Egipto – se desagregar, a Irmandade irromperia como única força alternativa e estruturada. A “sociedade política” é ainda muito frágil.
Decorre daqui que o movimento democrático só pode encontrar uma saída em colaboração com os militares. Disso depende a integração política dos Irmãos, com menor risco de “efeito Hamas”: a conquista do parlamento em eleições imediatas, antes de uma estruturação da cena política.
Se a analogia dos dominós da Europa de Leste em 1989 induz a ilusão de uma democratização “fatal”, também a obsessão iraniana pode cegar, induzindo a ideia de islamização “fatal”. A explicação é simples. A revolução dos ayatollah aconteceu há três décadas e mudou tudo, a começar pela percepção do islamismo político como risco de tirania.
Se não fosse assim, porque tanto se discutiria a ameaça fundamentalista?