Para os empregadores, os funcionários são preguiçosos e reclamam por tudo e mais alguma coisa. Do outro lado da barricada, os trabalhadores olham para os sindicatos como um objecto na mão do patronato que varre para debaixo do tapete um emaranhado de injustiças laborais. A OTM-Central Sindical, dizem, vale pelo seu factor estratégico de rampa de lançamento político e não como um órgão que representa o trabalhador moçambicano…
Ainda no piso térreo das instalações da antiga Fábrica Continental de Borracha (FACOBOL), localizada na Avenida de Angola, na cidade de Maputo, o barulho das máquinas de cortar madeira chega aos ouvidos.
Não é um ruído ensurdecedor, mas também não deixa ninguém indiferente, assim como as condições de trabalho.Trata-se da oficina de carpintaria/marcenaria da empresa Dormiflex – Comércio e Indústria de Colchões em pleno funcionamento.
No interior, um grupo de homens, entre ajudantes e mestres, trabalham a madeira para a produção de móveis, nomeadamente mobílias de escritórios, quarto e sala. Uma poeira espessa provocada pela actividade acumula-se por todos lados da oficina.
Os trabalhadores não ostentam uniformes em condições, nem botas e tão-pouco máscaras. Tem sido assim todos os dias, de segunda a sexta-feira, das 7h00 às 17h00 (Com interrupção de uma hora no período destinado ao almoço).
Mas as exigências vão mais além. Há anos que os artífices da empresa na área de exploração de madeira (carpintaria/marcenaria) têm vindo a exigir o cumprimento de direitos laborais ao patronato. A falta de higiene e segurança no trabalho figura no topo da enorme lista de reclamações que um grupo de trabalhadores apresenta.
“Há muito tempo que temos vindo a pedir que se cumpram os nossos direitos como trabalhadores, tais como uniforme, higiene e segurança no trabalho, botas, máscaras e também queremos leite. O nosso patrão simplesmente ignora as nossas preocupações”, diz um dos trabalhadores e outro sublinha: “Nesta empresa nunca houve respeito pelos nossos direitos”.
Todas as cartas submetidas à direcção da empresa pedindo o cumprimento dos direitos dos trabalhadores, sobretudo a disponibilização de equipamentos de trabalho foram todas indeferidas.
“Sempre que pedimos, por exemplo, leite, o nosso patrão responde com uma provocação dizendo que vai trazer um cabrito de Portugal. Ele leva tudo para a brincadeira, mas um dia vai arrepender-se de estar a brincar connosco”, afirmam.
De acordo com Ernesto Boana, falando em representação do proprietário da empresa que se encontra fora do país a tratar da sua saúde, todas as questões levantadas pelos trabalhadores relacionadas com higiene e segurança no trabalho “são assuntos já ultrapassados. Brevemente, vamos receber uniformes. Estiveram aqui há dias algumas pessoas a tirar as medidas de cada trabalhador”, garante.
Porém, os trabalhadores afirmam que há muito tempo que as promessas deixaram de ser cumpridas naquela empresa. “É sempre assim, o nosso patrão diz que sim, ou seja, ele concorda em satisfazer todas as exigências, mas nunca se preocupa em cumpri-las. Temos de usar a nossa própria roupa para trabalhar. Dizem que até o dia 15 de Julho teremos uniformes, vamos esperar para ver”.
A Dormiflex funciona desde o ano de 1998, mas a carpintaria/ marcenaria começou a laborar em 2000.Segundo os trabalhadores, a empresa arrenda o espaço nas instalações da FACOBOL, dispõem de pelo menos 70 trabalhadores e já obteve o selo “Made in Mozambique”. “Ficámos a saber através do nosso patrão que a empresa já tinha o selo e nós ficámos perplexos, pois como é que o Governo atribuiu uma coisa dessas a alguém que viola os direitos dos trabalhadores ?”, questionam.
Atraso e descontos salariais
O grupo de trabalhadores que apresentou a reclamação é composto por chefes de família que fazem desse emprego a única fonte de rendimento para garantir o sustento dos seus respectivos agregados familiares constituídos, em média, por quatro pessoas. Auferem salários que variam de 2500 meticais a 4200, montante que consideram bastante irrisório para levar um vida com o mínimo de dignidade.
Para agravar a situação, estão os constantes atrasos no pagamento de salários e os descontos sem nenhuma justificação da parte do patronato. “Com o que ganhamos já não dá para viver e, como se não bastasse, sofremos descontos quase todos os meses, mesmo em casos de doença, além dos atrasos sem satisfação”, contam e afirmam ainda que “todos os dias a empresa recebe encomendas, nós fazemos mobílias a tempo e horas e não percebemos porque não temos o salário no fim do mês. Geralmente recebemos entre os dias 15 e 19. Temos famílias por sustentar e dependemos desse dinheiro”.
“Quando o salário atrasa, recorro a outros parentes ou mesmo aos vizinhos para poder chegar cedo ao trabalho”, diz um dos trabalhadores.
Ernesto Boana afirmou que a empresa “não deve salários” a nenhum trabalhador e tão-pouco verifi ca-se atraso no pagamento das remunerações. “Existe um regulamento interno segundo o qual o salário deve ser pago até o dia cinco. O que acontece é que eles habituaram-se a receber nos dias 27 ou 28 e quando o ordenado sai nos dias três a quatro dizem estar atrasado”.
Mais adiante os trabalhadores acrescentam: “Trabalhamos muito e só ganhamos insultos das 7h00 às 17h00, com intervalos de uma hora. Em caso de atraso de seis minutos descontam 30. Gostaríamos de saber quanto é que se paga pelo atraso dos nossos salários”.
Desde Abril que os trabalhadores da Dormifl ex têm vindo a exigir o ajustamento da remuneração na empresa, uma vez que no mesmo mês o Governo anunciou a nova tabela de salários mínimos nacionais. “Os aumentos salários são feitos quando ele entende e não de acordo com as categorias”, dizem.
Todos estes assuntos, segundo os trabalhadores, são também do conhecimento do Sindicato da empresa que é acusada de ser “inerte e incapaz enquanto os funcionários estão sujeitos a ser zombados e espezinhados com palavrões”.
Um dos elementos do Sindicato da empresa garantiu que o patronato não toma em consideração as preocupações dos sindicalistas e nem os consulta em algumas questões, apenas recorre a estes nos casos em que são os trabalhadores a cometerem erros. “As pessoas são expulsas e contratadas sem o nosso conhecimento, ou seja, não há nenhuma satisfação da parte do patrão. É como se não existisse o Sindicato”.
Contam ainda que nos finais do ano passado se reuniram com o patronato para procurar entender o porquê de ainda não terem recebido os salários até aquela data, visto que se tratava da época festiva e o Governo apelara para que os empregadores pagassem com antecedência, mas a resposta não veio de encontro às expectativas:“Que se lixe o Governo! Isto é meu e pago salários quando eu quiser”.
Além disso, os trabalhadores também se queixam da falta de assistência médica e medicamentosa, apesar de estarem expostos à poeira e a alguns produtos tóxicos, e de não beneficiarem de bónus de antiguidade e subsídio de férias.
Receio dos trabalhadores
Há mais de cinco anos na carpintaria/marcenaria da Dormiflex, os trabalhadores têm receio de um dia ficar sem emprego supostamente porque o patronato pretende desfazer-se da empresa. Além disso, eles suspeitam de que a oficina não esteja registada, uma vez que não há nada que a identifique, e questionam o porquê de nunca terem recebido uma equipa da Inspecção do Trabalho.
Boana afirma não ter conhecimento das reclamações feitas pelos trabalhadores ao patronato e acrescenta que algumas não têm fundamento, além de “não constituírem verdade”.
Segundo os empregados, todas as preocupações já são do conhecimento da Organização dos Trabalhadores de Moçambique – Central Sindical (OTM-CS), mas nunca obtiveram uma resposta satisfatória, o que lhes leva a perder fé nesta agremiação no que diz respeito à resolução dos seus problemas.
MozEquipamentos: será que há direitos dos trabalhadores?
Há anos que Miguel* trabalha como mecânico. Arranhaduras e mordidas de cães tatuam o seu corpo, revelando os maus tratos por que ele e os seus colegas têm passado no posto de trabalho.
Faz muito tempo que Miguel trabalha na oficina mecânica da empresa MozEquipamentos, também conhecida por Clutch Brake Specialists (CBS), situada no bairro do Zimpeto. E a necessidade de ganhar o sustento para sua família faz-lhe submeter-se à humilhações de todos os géneros, desde a violência verbal até a física.
“Somos tratados como cães. Aliás, os cães cuidados por João Manhiça (também trabalhador da mesma empresa) têm melhor tratamento que nós”, diz e acrescenta: “somos insultados, agredidos e, durante o trabalho, chamados de pretos, porcos, escravos, entre outros nomes depreciativos”.
Há algum tempo, Miguel conta que não cumpriu as metas que lhe haviam sido colocadas num daqueles dias de trabalho e isso valeu-lhe uma valente bofetada. “Não retaliei porque ainda precisava do emprego. Quando nos queixamos de alguma situação, somos dados aos cães que lá existem. Isto só acontece com os trabalhadores moçambicanos, pois com os brasileiros e outros estrangeiros o tratamento é diferente”, afirma.
A violação dos direitos laborais é protagonizada pelo patronato. Já perdura há alguns anos. “Não sabemos quem nos poderá ajudar a sair deste sofrimento”, diz Miguel.
Além de Miguel, um grupo de trabalhadores da empresa queixou-se da violação dos seus direitos. Das preocupações apresentadas, destacam-se a agressão física e verbal, e o facto de não disporem de descanso diário e semanal. “Trabalhamos todos os dias sem descanso. Isto ainda continua ao tempo da escravatura”, comentam e acrescentam: “quem tenta reclamar, arrisca-se a ser surrado ou a perder o emprego”.
Manuel*, mecânico há muitos anos, garante que chegou a desistir de trabalhar devido às arranhaduras e mordeduras de cães. “Quando fui reclamar, recebi ameaças de perda de emprego e até de morte”, conta.
Na Moz Equipamentos os trabalhadores recusam-se a fazer qualquer tipo de comentário, pois temem represálias. Na entrada da oficina, encontrámos um funcionário da empresa que não quis ser identifi cado que disse apenas: “Eu não sei de nada”. O medo é visível em cada um deles quando questionados sobre os maus tratos denunciados por um dos seus colegas.
* Nomes fictícios
Direitos laborais e o papel dos sindicatos
São alguns dos direitos dos trabalhadores moçambicanos consagrados na Lei do Trabalho em Moçambique, nomeadamente ter assegurado um posto de trabalho; ser remunerado; ser tratado com correcção e respeito; e ter assegurado o descanso diário, semanal e férias anuais remuneradas. Mas, na prática, a realidade é outra, ou seja, no país, os direitos laborais, apesar de previstos e consagrados na legislação, são sistematicamente ignorados ou violados pelas entidades patronais.
As denúncias que diversas empresas onde existem estruturas sindicais de base têm encaminhado à Organização dos Trabalhadores de Moçambique – Central Sindical (OTM-CS) têm a ver com a violação dos direitos dos trabalhadores maioritariamente ligadas às reivindicações pelo pagamento de salários, respeito ao horário normal de trabalho e a observância das regras de higiene e segurança no trabalho.
Por não verem as suas preocupações resolvidas, os trabalhadores passam a olhar para os sindicatos como sendo os braços direitos dos patronatos.Esta situação não se verifica apenas em relação aos sindicatos nas empresas, mas também a nível central. Aliás, as greves recorrentes em algumas empresas são o sintoma do descrédito em que tais organismos que supostamente defendem os interesses da classe operária caíram.
Além disso, a OTM-CS é também vista, por grande parte dos trabalhadores, como sendo um órgão ligado ao Governo e ao partido no poder. Esta percepção deve-se, sobretudo, à incapacidade de impor melhores condições de trabalho e, acima de tudo, salariais aos parceiros sociais, além do próprio contexto de formação ou surgimento do movimento sindical no país.
Porém, a organização afirma que existem entidades patronais tendenciosas que criam barreiras para que as representações sindicais não possam funcionar devidamente, o que resulta claramente numa forma de intimidação para os trabalhadores. No entanto, os sindicatos têm pautado pela aproximação e aconselhamento das entidades empregadoras, mostrando-lhes que este facto não só prejudica o trabalhador, como também provoca um mau ambiente dentro da empresa, o que traz inevitavelmente repercussões na produtividade.
Greves em Moçambique
Os sindicatos a nível das empresas, assim como central, têm tido um papel pouco relevante na vida profissional e social dos trabalhadores. As inúmeras greves verificadas no país na sua maioria têm sido levadas a cabo à margem dos sindicatos, ou seja, poucas foram as que contaram com o apoio do Comité Sindical local.
Dentre as preocupações dos trabalhadores, destacam-se o reajuste de salário, violação dos direitos laborais ou incumprimento da Lei de Trabalho em vigor no país.
A título de exemplo, nos fi nais de 2009, cerca de 60 trabalhadores do Hotel Santa Cruz, na Avenida 24 de Julho, em Maputo, entraram em greve, exigindo que o Estado esclarecesse por que motivo vendeu aquele hotel a privados, desrespeitando a Lei do Trabalho no seu artigo 77, números um, dois e três. Além disso, exigiam também 20 porcento das acções reservadas aos funcionários e técnicos pela conservação do hotel desde o seu abandono pelos proprietários após a independência.
Ainda em 2009, pouco mais de 1200 trabalhadores da Oderbrecth, consórcio da companhia mineira Vale, paralisaram as suas actividades, pois exigiam o reajuste do salário e a melhoria das condições de trabalho.
Em Junho de 2010, os 650 trabalhadores moçambicanos envolvidos na construção do Estádio Nacional do Zimpeto paralisaram as suas actividades, reclamando o cumprimento de uma série de reivindicações. Eles exigiam um aumento salarial de 20 porcento, com efeitos retroactivos a partir de Abril, fornecimento de equipamento de protecção e segurança no trabalho e garantias de um subsídio de gratifi cação fixado em quatro salários mínimos. Semanas depois, voltou-se a assistir a mais uma nova greve, pois apesar de o sindicato ter concordado com algumas questões, a maioria dos trabalhadores não aceitava as conclusões das negociações.
Em Julho de 2010, pouco mais de 1800 trabalhadores da empresa Matanuska, no posto administrativo de Namialo, distrito de Monapo, em Nampula, entraram em greve exigindo a revisão salarial, assistência médica, ao mesmo tempo que se manifestavam contra as expulsões sem justa causa.
Nos finais de Abril de 2011, mais de 600 trabalhadores da empresa KENMARE, Projecto das Areias Pesadas de Moma, em Nampula, paralisaram as actividades normais da empresa para observar uma greve geral por tempo indeterminado, pois exigiam o cumprimento da Lei do Trabalho em vigor no país.
Ainda em 2011,um grupo constituído por pouco mais de 100 trabalhadores da G4S entraram em greve para exigir o pagamento de salários em atraso e valores descontados arbitrariamente, a remuneração referente a quatro horas de trabalho extraordinário por dia, o cálculo do salário em 12 horas e o cumprimento do horário estipulado na legislação em vigor no país. Os guardas e vigilantes foram brutalmente espancados pelos agentes da Força de Intervenção Rápida (FIR), além de terem sido presos.