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Quando o estômago ruge a arte foge!

Quando o estômago ruge a arte foge!

O chaveiro moçambicano Pedro Carlos Panguana – cujo vasto reportório artístico-musical jaz nos arquivos fonográficos da Rádio Moçambique – é um caso a partir do qual se pode concluir que, no país da Marrabenta, o génio não basta para se viver simplesmente da habilidade. Remou e remou contra uma maré que não parou de crescer até que, sem ser “bem-sucedido”, acabou por se prostrar numa actividade manufactureira. O seu estômago rugiu e a arte fugiu. E assim se “matam” os génios no país…

É um talento que o país perdeu. Mas ainda se pode recuperar. Afinal, as suas obras – inúmeras, esclareça-se – povoam os departamentos arquivísticos da Rádio Moçambique. Outras, em número não especificado, convivem consigo na sua residência, alimentando o anseio que quem, além de o conhecer como cantor, se identifica com a sua música.

O seu nome é Pedro Carlos Panguana. Podia ser considerado – sem nenhum receio – um músico, porque é ao canto que durante largos anos da sua vida, se dedicou até que a ideologia da luta contra a pobreza absoluta que, no seu país, se apregoa obteve as provas de que a arte de cantar não era adequada. Devia definir outra, mais mecânica e, provavelmente, que demanda menos exercício mental. Por essa razão, acabou por se dedicar, definitivamente (?), à reparação e fabricação de cadeados. O músico Panguana é chaveiro. Percebamos a sua história como cantor.

O artista nasceu em 1950. Actualmente, com 64 anos de idade, o artista recebeu-nos na sua oficina adstrita ao quintal da sua casa, no bairro do Nkobe, algures na cidade da Matola. Não sabemos por onde começar a conversa. Mas nem é necessário tamanho desassossego. Quando se fala de uma catarse que ocorreu por razões alheias à nossa vontade – e é isso o que aconteceu em relação ao “matrimónio” de Panguana com a música – não se deve ter receios. Desabafa-se! E é isso o que Pedro Carlos Panguana faz. Há vezes que falar é terapêutico. “Todas as minhas músicas foram radiodifundidas da Rádio Moçambique, mas nunca ganhei dinheiro. Por isso decidi abandonar a música. Agora dedico-me, completamente, à produção de chaves”, começa por dizer Panguana.

A sua relação com a música iniciou nos finais de 1960, tendo-se afirmado ao longo da década seguinte, no Grupo do Canto Coral da Igreja Wesleyana. Por causa da sua dedicação e talento no canto, muito cedo Pedro Carlos Panguana tornou-se o vocalista principal e maestro da colectividade. Por outro lado, Panguana passou a ser solicitado por várias igrejas para prestar o aludido serviço. Em resultado dessa vocação e empenho, em 1980 o cantor realizou o seu primeiro registo musical, nas Produções 1001. A sua obra, Lhwehi Wa N’sati, foi bem-sucedida de tal sorte que nos dias actuais é escutada com alguma nostalgia.

De acordo com o intérprete, há vezes que a Rádio Moçambique transmite a obra em referência. Afinal, “todas as minhas músicas têm boa qualidade”, refere. Depois do sucesso conseguido na primeira composição, o artista ganhou ímpeto para gravar um disco – na altura vigoravam os de 45 rotações. Por isso, a sua primeira obra discográfica só tinha duas faixas musicais. Produziram-se 5 mil cópias que foram compradas em menos de duas semanas. O cantor relata que a Rádio Moçambique é que vendeu as obras. No entanto, “o retorno financeiro foi insignificante”.

A publicação do primeiro disco foi acompanhada pela realização de muitos concertos. Os palcos do Gil Vicente Bar, em Maputo, acolheram alguns dos mais marcantes. “Cantei para um público muito vibrante. A casa estava cheia. Fui muito aplaudido. Por isso, o evento foi gratificante. Naquela época cantávamos por amor à camisola. Investia os meus parcos recursos para receber fama em troca”, recorda-se o artista.

A actuação sobre a qual Pedro Panguana se refere, no Gil Vicente Bar, é simbólica por várias razões: Além da cobertura jornalística da histórica Revista Tempo, também contou com a participação dos mais conceituados músicos moçambicanos, na altura. Avelino Mondlane, João Bata e Fernando Luís são alguns exemplos.

“Quando fizemos uma digressão na província de Gaza, todos eles consumiam bebidas alcoólicas, menos eu. Por isso, muitas vezes, eles ficavam espantados com o facto de que eu fazia boas actuações – cantar e dançar – sem beber nem fumar”. Pedro Carlos Panguana não toca nenhum instrumento musical. O seu dom é a voz que possui. Compõe as suas próprias músicas, tendo em conta a necessidade de realizar uma espécie de intervenção social. “Nas minhas músicas, invoco o amor e a ordem social”, diz.

Porque para cantar, Pedro Panguana – que é primo de Baptista Panguana, outro músico moçambicano célebre, já falecido – investia o seu próprio salário, ao longo dos anos 90, o artista decidiu desistir da arte. É que a actividade não lhe garantia a subsistência. Desde essa época até à actualidade, o cantor produz e repara chaves. “Sou chaveiro desde os meus 17 anos. Comecei a trabalhar nesse sector em 1967, mas sempre amei a música. Nunca pensei que um dia teria de abandoná-la. Infelizmente, o estômago falou mais alto”.

Com seis filhos sob a sua responsabilidade – um dos quais deficiente, demandando, por isso, cuidados redobrados –, vezes sem conta, Panguana viu-se forçado a ignorar a paixão da sua vida, o canto. Em 2010 parou de trabalhar na empresa onde trabalhava. Mas como Bashir Jassat, o patrono da referida empresa, lhe ofereceu uma máquina de fabrico de chaves, dois anos depois, em 2012, Carlos Panguana criou a sua oficina no bairro Nkobe. É naquela zona onde se pode recuperar um talento musical, já na terceira idade.

 

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