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Quando leões viram solas de sapato

Desmobilizados mais uma vez driblados pelo governo

Pouco mais de 500 manifestantes, entre desmobilizados de guerra, viúvas e órfãos destes, passando pelos ex-milicianos até aos naparamas, protestaram na última terça-feira, dia 25, no Centro de Manutenção Física António Repinga, a poucos metros do gabinete do Primeiro-Ministro, na baixa da cidade de Maputo.

O presidente do Fórum dos Desmobilizados de Guerra de Moçambique (FDGM), Hermínio dos Santos, disse que o principal objectivo destas manifestações é exigir uma pensão mensal de 12 mil meticais para cada desmobilizado de guerra, ex-miliciano, órfãos e viúvas e o enquadramento dos milicianos nas fi leiras das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) ou na Polícia da República de Moçambique (PRM). “O ideal era que o Governo pagasse uma pensão mensal de 25 mil meticais por cada desmobilizado, mas decidimos baixar para 12 mil e não menos que isso”, afirma o presidente do FDGM.

Num documento submetido à Presidência da República, ao qual tivemos acesso, os desmobilizados convoca(ra)m para o dia 25 de Outubro uma manifestação pacífi ca, cujo centro seria o Circuito de Manutenção António Repinga, como forma de exigir que o Governo os reconheça e que resolva defi nitivamente este caso, que já dura 19 anos. “O que nós queremos é que o Governo reconheça o nosso papel na luta pela democracia”.

Ainda de acordo com o documento que temos vindo a citar, os desmobilizados pretendiam falar com o Presidente da República, Armando Guebuza, ou com o Primeiro-Ministro, Aires Ali. Uma vez que a manifestação começou na terça-feira, dia em que o reúne o Conselho de Ministros, estes tinham a esperança de que o assunto constasse da agenda do Governo, mas a estratégia revelou- se infrutífera pois o Governo nem sequer tocou no assunto.

Segundo o porta-voz do Governo, Alberto Nkutumula, que falava no habitual briefing, “nós – Governo – não sabemos que existem pessoas a manifestar-se lá fora, por isso não me posso pronunciar relativamente a isso, uma vez que isso não constituía matéria de debate na sessão desta terça-feira”. Esta resposta deixou quase todos os profi ssionais da comunicação social admirados e pasmados, uma vez que os manifestantes estavam num lugar estratégico.

Aliás, os desmobilizados estavam mesmo em frente à porta de entrada e saída dos membros do Governo. Porém, naquele dia, estes optaram por usar uma porta alternativa, a traseira. Estas manobras foram para distrair e enganar os manifestantes, e surtiu efeito pois estes – desmobilizados – não se aperceberam de que o Conselho de Ministros já se tinha reunido e muito menos quando este se retirou do local.

O valor de 12 mil meticais foi fi xado tendo em conta o elevado custo de vida e o facto de, durante os 19 anos, não terem recebido nenhum benefício por parte do Governo. “Não temos direito à assistência médica e medicamentosa, não temos enquadramento nas FADM, muito menos na PRM. Não podemos admitir que isso continue. Nós lutámos pela democracia deste país, mas somos desprezados”, disse Hermínio dos Santos, visivelmente agastado com a situação a que o seu grupo está votado.

Armindo Alache, de 42 anos de idade, reside actualmente no bairro do Aeroporto, algures na cidade de Maputo, e é pai de quatro fi lhos. Está desempregado desde o ano de 1982, ano em que foi desmobilizado. Desde essa altura, trabalha como sapateiro para poder sustentar a sua família.

“Tenho arrecadado algum dinheiro que dá para garantir a alimentação dos meus fi lhos e custear despesas inerentes à sua formação”, conta.

Volvidos 19 anos após o término da guerra dos 16 anos, Alache lamenta o facto de o Governo não respeitar os combatentes, que dedicaram parte da sua juventude a lutar pela paz e democracia que hoje se vive no país.

Alache também não concorda com os critérios definidos e usados pelo Executivo para fixar pensões. “O Governo dá valor e consideração aos que estiveram dez anos ou mais na tropa, e nós que ficámos nas fileiras do exército abaixo desse tempo não somos incluídos por que motivo? O Serviço Militar Obrigatório era apenas de dois anos, mesmo assim continuamos a ser discriminados, enquanto os outros que se encontram na mesma situação que a nossa engordam os seus bolsos de gorjetas e bónus providenciados pelo Estado”, comenta.

“Tenho filhos que já não estudam por falta de condições”

Gil Armando Cossa é natural do distrito de Massinga, província de Inhambane. Tem 42 anos de idade e é pai de oito filhos. Foi desmobilizado em ´92, mesmo no fim da guerra que devastou o país durante 16 anos. Ingressou nas fileiras do exército no quartel da Massinga, em 1984.

À semelhança dos outros desmobilizados de guerra, desde que terminou a guerra, nunca teve um emprego sequer. Para garantir a sobrevivência da sua família socorre-se do negócio de cocos, uma actividade cujas receitas servem também para o pagamento das despesas dos seus filhos que frequentam o ensino primário.

“Tenho filhos que já concluíram o ensino primário, mas que, por falta de condições, não puderam dar continuidade os estudos”, conta este homem que teve de fazer sacrifícios para juntar mais de 500,00 meticais para poder juntar-se às manifestações.

Porém, Cossa não ingressou nas fileiras do exército de livre e espontânea vontade, foi recrutado quando frequentava a 7ª classe. “Abdiquei dos meus estudos para defender o país e hoje somos espezinhados, desprezados e discriminados. Há pessoas que, sob a capa de desmobilizados de guerra, estão a comer à nossa custa, por cima do nosso sacrifício na busca da paz e democracia ”, desabafa.

Este desmobilizado diz ter aderido à manifestação por ser um membro fi el do fórum e por se identifi car com os objectivos deste. “Não pensei que fosse dormir ao relento, sem nada para cobrir. Mas fi-lo porque me identifico com os anseios e interesses dos meus companheiros”, acrescenta.

Cossa afirma que não vai regressar à sua terra, onde deixou a sua família, se não for resolvido o problema que os levou à manifestação. “Eu quero ver o desfecho deste caso, o que o Governo fez na última terça-feira foi uma atitude que só pode ser atribuída a pessoas arrogantes, dizem que não nos viram, mesmo a poucos metros do gabinete onde estavam reunidos, isso não faz sentido”, diz.

“Vamos lutar até às últimas consequências”

Ainda na manifestação, encontrámos Felismina Wate, de 53 anos de idade, e mãe de 7 filhos. Ela estava em representação do marido, Raimundo Tivane, desmobilizado de guerra, que não se pôde juntar aos outros por se encontrar doente. Para aquela mulher, as condições de vida estão a defi nhar cada vez mais. O seu marido, que há meses não sai de casa, não pode pode beneficiar da assistência médica e medicamentosa do Governo, alegadamente porque não está contemplado.

Segundo Felismina, o seu marido combateu na região centro do país, já esteve no Alto-Molocué, Maganja da Costa, entre outros cantos do país, com o objectivo único de lutar pela democracia e paz neste Moçambique que o viu nascer no longínquo ano de 1948.

“Desde que ele foi desmobilizado nunca teve emprego algum, a sua vida resume-se a pequenos biscates aqui e acolá. Eu também faço alguns trabalhos domésticos na vizinhança”, conta, para depois acrescentar que tem filhos que vão à escola, uns a frequentar o ensino primário e outros quase a fi nalizar o secundário, mas “porque não temos dinheiro, por mais que concluam o nível médio, não poderão continuar com os estudos, a não ser que virem as atenções para o concorrido mercado do emprego neste país”.

Felismina acredita que mais tarde ou cedo o Governo vai dar o que aos desmobilizados de guerra é devido e promete, a par dos seus companheiros, manifestar-se pacifi camente até as últimas consequências.

Na manhã desta quarta-feira os manifestantes foram convocados a uma reunião como o ministro dos Combatentes, Mateus Kida. Embora tivessem como exigência falar com o Presidente da República ou com o Primeiro-Ministro, estes não fizeram ouvidos de mercador e deslocaram-se, sob escolta policial, ao Ministério dos Combatentes. Depois do encontro a manifestação foi suspensa e uma nova reunião entre as partes fi cou agendada para a próxima quarta-feira próxima.

“No encontro da próxima quarta-feira, queremos que o ministro dos Combatentes nos diga quando é que vamos ser recebidos pelo Presidente da República, o único que pode responder às nossas preocupações que apresentamos através de um documento que lhe canalizamos a 15 de Agosto último”, afi rmou Hermínio dos Santos à saída do encontro acrescentando que caso tal não ocorra, poderão voltar a manifestar-se por um período indeterminado até que as suas exigências sejam satisfeitas.

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