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Poemas e ritmos da guerra ficaram órfãos de intérpretes*

“A nguva ni nguva yini xihitani xa vanu vanga hanya nkama wakona. I sungu muini hinga ta tela vatukulu?” Traduzido, o discurso do músico moçambicano, Filipe Nhassavele, antes de indagar “que histórias contaremos aos nossos netos?”, afirma que “cada época possui os seus contos”.

Esta visão historicista de Nhassevele deve ser a indignação de muitos dos meus conterrâneos, perante o cenário da guerra que parece estar-se a forjar, com tantos avisos de uma possível erupção vulcânica, cujas lavas atingem sempre as massas comuns (nós, os do terceiro Estado. Nós, os operários e camponeses, ou, se quisermos, nós, o proletariado). Nós que lutamos dia-a-dia para ter um lugarzinho no plano médio das classes sociais que, a cada dia, é adiado por um fosso cada vez maior entre os riquíssimos, os poderosos, os insensíveis e os que sucumbem na pobreza.

Esses pensamentos vêm-me a propósito das boas produções musicais que surgiram ao longo das décadas de 1980 e princípios de 1990, geradas à luz do contexto político-militar contemporâneo. Trata-se de uma inspiração que nenhum artista gostaria de ter. Naquele período, grandes poemas ritmados fizeram-se ouvir, provocando uma séria reflexão para os consumidores atentos.

Nestes escritos, vou fazer desfilar quatro temas de igual número de célebres vozes da música moçambicana, a fim de perceber a maneira como permitiram que a sua inspiração nos trouxesse a imagem artística de um conflito que, 21 anos depois de se ter calado, por vontade de homens sábios, desta vez, os mesmos, de forma quase infantil, pretendem permitir que o conflito se instale novamente no país. Aqui analiso as criações musicais intituladas Mabunganine, África, Khombo África e Xabuba, respectivamente, da autoria de Alexandre Langa, Aniano Tamele, Joaquim Macuácua e Filipe Nhassavele.

Mabunganine

Mabunganine, aldeia natal do mestre Alexandre Langa, lá mesmo, onde os seus restos mortais jazem há 10 anos. Naquela localidade, há um bicho que, gradualmente, mata as pessoas uma a uma. O referido animal é conhecido pelo nome Nhambondzana. Quando as pessoas morrem, sem explicação nenhuma, sempre se invoca o poder maléfico da feitiçaria. Nesse caso, os velhos (sempre eles, coitados) são convidados a beber uma poção (não a mágica do druida Panoramix da revista Astérix). Os feiticeiros são descobertos e revelam todas as suas vítimas. Langa canta este hino no período entre finais da década de 80 e princípios da década de 90.

A guerra estava insuportável e o seu videoclipe é comovente. Alexandre Langa canta no Cemitério de Lhanguene, o que emociona o povo. Afinal de contas, esses velhos devem ir beber “monzo”. Eles é que declaram a guerra e os mancebos é que morrem. A sua revolta em relação à guerra é expressa nas palavras seguintes: “a tiku leli loku akova la mina a nita komela madoda maya txinisiwa ntwayi”, o mesmo que “se este país fosse meu, iria dar um castigo militar a todos os dirigentes”.

Naquela altura, o artista tinha uma razão que se mantém intemporal. Os nossos dirigentes políticos precisam de um castigo militar nas matas. Afinal é lá, nas selvas de Nachingweya, onde eles se formaram. Não admito que se tenham esquecido dos ideais que, para lá, os moveram. Interessa notar que na sua lírica, Alexandre Langa canta sobre a sua Mabunganine, chorando pelos seus familiares.

Dirão os historiadores que só os acontecimentos de largo impacto histórico-geográfico é que devem ser registados. Não estou de acordo, porque no meu primeiro livro de história, quando frequentava a 4ª classe, aprendi que eu também tenho uma história. A história genealógica de Alexandre Langa, de Dadivo José ou de qualquer outro mortal moçambicano não pode ser hipotecada por causa da arrogância imbecil dos nossos dirigentes.

Com estes dirigentes quebrou-se o pacto social. E, sem chegar ao poder, como radicaliza o rapper moçambicano Azagaia, o povo moçambicano reivindica como reclamou o bom povo de Deus, sempre que lhe aparecesse um Saul qualquer como rei. É que essa história do povo no poder se mostrou não implementável em 1871 na dita Comuna de Paris, quando os operários e camponeses permaneceram naquele local um período de uns 72 dias. Existem algumas correntes de opinião que afirmam que Alexandre Langa só reclama por Mabunganine e pelos seus familiares por mero egoísmo – o que não é verdade. Tal como hoje, todas as pessoas lamentam os impactos da guerra, mas o comodismo e a insensibilidade dos que reagem o Estado não é um boato.

Vivemos situações similares às ocorridas a 18 de Outubro de 1987, em Homoíne na ilusão de que não se passa nada. Até porque enquanto a água não invadir o meu quintal, o problema da erosão sempre é do vizinho. Se alguém me perguntar sobre o ritmo da composição Mabunganine, não conseguirei responder. Poderei dizer que ela possui influências da música sul-africana e da nossa magika de tal sorte que se produziu aquela obra. Gosto do diálogo das guitarras e do teclado com uma viola baixo bem balançada, sugerindo mesmo uma marcha de fuga para o local de abrigo ou refúgio.

África

Este hino, com o título África, foi criado em 1989 e é vocalizado por Aniano Tamele, um homem que não sabe cantar mal e com aparições musicais de uma raridade que só me fazem lembrar uma chuva de Inverno. Nesta música o integrante do clã Tamele, liderado por Zeburane, questiona o poder de amparar da mãe África, porque o sol, no seu movimento aparente de nascer e deitar-se, ela abandona os seus filhos à sua sorte.

Sem abrigo, as balas, a fome, entre outros males, colocam em jogo os sonhos dos africanos de Moçambique, de Soweto – palco de grandes movimentos anti-apartheid –, de Namíbia e de Angola. Não são só os moçambicanos que sofrem pelas suas escolhas – recorde-se de que cada povo tem o governo selecciona –, mas outros também tendem a escolher mal, ou, no mínimo, não lhes deixam escolher. Gosto de ouvir esta música calma, criada por quem muito escutou as obras do sul-africano Steve Kekana, tendo associado essa experiência aos ensinamentos do seu pai, Zeburane.

Khombo Muni

Joaquim Macuácua faleceu em 2003, depois de ter feito uma carreira marcada por composições muito polémicas, contundentes, tendo o ponto alto da controvérsia se verificado na canção Dadinha, circunstancialmente censurada e banida. Na canção Khombo Muni sobre a qual me focalizo, Macuácua pergunta se as desgraças que se verificam em África, este continente paradoxalmente cheio de riquezas, são uma concretização de um destino traçado.

Como que a usar a música para experimentar uma terapia, o intérprete enumera todos os seus familiares e amigos que tombaram nos vários campos de chacina criados em Moçambique. Os que fugiam acabavam por abandonar as suas terras cultivadas, sujeitando-se à fome aguda cujos impactos se expressavam nos seus rostos. Afinal este continente subdesenvolvido mostra-se como tal através da sua dependência por uma agricultura de subsistência.

O artista comove-me quando confessa que “swa vavisa swonoi kumbuxa kufa ka mamani”. Ou seja, “é-me muito doloroso recordar-me da morte da minha mãe”. Sim Macuácua, em 3 de Fevereiro, Maluana, Manjakazi, Homoíne e tantos outros lugares, muitas mães foram assassinadas. Sei que a minha cunhada viu a morte da mãe e, na sua inocência, carregou a criancinha no colo (a sua irmanzinha), também morta, sem dar conta de que estava a carregar um cadáver atingido pela mesma bala assassina da mãe.

Macuácua também acreditava na teoria de conspiração: “a guerra não é criada por nós. Os outros é que nos agitam. E nós, parvos, aceitamos lutar entre nós e estragarmos a nossa bela pátria”. Esta composição musical, uma “muthimba” bem balançada, tem uma viragem rítmica quase radical, que sempre caracterizou a sua linha.

Pegando num balanço que me recorda as músicas da República Democrática do Congo – até porque Macuácua viveu em Congo –, o homem emite um “nhandayeyo”, grito de socorro, para todos o ouvirem. No entanto, nesse esconjurar a morte, temos de ter forças para nos despedirmos dos que perecem, celebrando a sua vida, porque em África sempre se dança e se canta por nada.

Xabuba

Filipe Nhassevele surge com esta música e projecta-se no mercado. Esta obra e a intitulada “vumbatana” foram um prenúncio de uma carreira sólida que o homem construiu. Xabuba é convocada neste debate não como um relato de guerra, mas pelas suas consequências. Aprecio a forma como o intérprete explora e discute a questão “viver de aparências”: “Unga mu vona ku gwira/ ingui o hlamba hi mali/ xabuba xivambalani” (A pessoa pode andar com ares de bem-estar, ostentando vestes caras, mas, na verdade, ela morre de fome).

Sim, já não há terra para o cultivo, as pessoas abandonaram os campos ocupados pelos homens armados, como acontece hoje, e vieram acantonar-se nas cidades. O êxodo rural é a primeira consequência de qualquer guerra. Por outro lado, podemos explorar a questão de “viver de aparências”, para mostrarmos o modo como, lunáticos que somos, insistimos no discurso de que está tudo bem, só porque a guerra ainda não rebentou na cidade. Xabuba sim. Xabuba lá em Homoíne, em Muxúnguè, Vanduze e, qualquer dia, voltaremos ao Xabuba em Maluane. Porque em Xabuba estamos perante as consequências da guerra.

Aprecio a maneira como se interpreta a forma grosseira como nos é tirada a terra, a comida, a casa e fugimos para a cidade – chegados de tractores feitos kalanga que, sem dentes, eram motivos de chacota em Maputo – onde ocupámos os campos de futebol. Entretanto, continuamos com a “movicenturice” inteira para nos divertimos fazendo sexo. Por isso Nhassevele convida Soninha para “hi hungata u siwana, hi ku ningafa ni siya txukela” (divertirmo-nos na pobreza antes que eu morra e deixe este mel).

Como tal, muitos filhos nascem, juntam-se aos tantos e concentram-se numa cidade que não possui estrutura para suportar tanta gente. O caos instala-se e, em resultado disso, experimentamos a mendicidade aguda, a criminalidade, a prostituição, os problemas relacionados com a habitação, entre outras loucuras sociais. Na sua música, uma “muthimba” parecida com “matxomana”, o ritmo usado por curandeiros nas suas sessões espíritas, Nhassavele falou sobre todos os males que a guerra origina numa criação cujo ritmo só ele sabe dançar com o seu jeito desengonçado, talento que veio para ficar.

*Uma crítica do dramaturgo moçambicano Dadivo José.

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