Dezassete anos depois de a pirogravura abandonar as galerias de arte, 14 dos quais de eterna saudade de um dos poucos, senão único gravador, em pirogravura, quando se compara as obras do conceituado artista moçambicano, Jorge Nhaca, com a sua réplica, em “O Bordado de São Paixão”, além da técnica poucos elementos marcam a diferença.
Ao que tudo indica, desde que o célebre artista visual moçambicano, Jorge Nhaca (cuja sublimação da sua obra se atingiu com a aplicação de técnica pirográfica) encontrou a morte, em 1997,um ano depois de ter feito a sua nona e última mostra individual, a pirogravura entrara em hibernação.
Ninguém mais, dentre os seus contemporâneos, como conta Machado da Graça, pegou nos seus ferros e os pôs ao lume para queimar as tábuas de forma extraordinariamente criativa como ele o fez ao longo dos últimos anos de carreira. Fica?se com a impressão de que, mesmo quando Jorge Nhaca vivia, poucos artistas (ou nenhum, além de si) se importavam em explorar aquela técnica.
Aliás, São Paixão, uma criadora de arte de origem portuguesa que recriou, por via do bordado, algumas obras de colecções particulares do malogrado, conta que existira um artista, no tempo colonial, que igual a Jorge explorara a pirogravura. No entanto, não se conhece o seu nome.
Isto equivale a afirmar que com o desaparecimento físico de Jorge Nhaca, a pirogravura, enquanto uma modalidade artística desapareceu.
É neste contexto que de há uns tempos para cá, o Museu Nacional de Arte (Musart), em expressão de quem está preocupado em resgatar uma técnica adormecida e, ao mesmo tempo, homenagear o considerado artista mais representativo no uso da técnica da pirogravura, uma série de entidades, algumas das quis o Musart, a artista São Paixão, o crítico e coleccionador de arte Machado da Graça, o conceituado músico moçambicano, José Mucavel, entre outras, reuniram sinergias para reduzir a nostalgia que a ausência de mostra de obras daquele género criou nos seus apreciadores.
A mostra que se chama “O Bordado de São Paixão” pode ser vista, em Maputo, até finais de Janeiro do ano 2012. No interstício da inauguração da mostra, o célebre compositor e intérprete moçambicano, José Mucavel aspergirá os presentes com o som da sua guitarra, introduzindo novas sonoridades do seu projecto etno-musical “Ritmos da Terra”, de que se originará o trabalho discográfico “Compassos II”.
Esta junção de artes, a pictórica e musical, no mesmo espaço,recriou qualquer coisa que se pode chamar de cultura tradicional. Algo rico em valores, criação, imaginação, folclore e acima de tudo muita originalidade.
A arte sobreviveu
Muitas vezes fiquei pensando que, uma vez que ele desaparecera fisicamente, a sua obra não mais seria lembrada. Que a arte, com ele, partira eternamente. Ou seja, que a sua arte também havia desaparecido. Mas, em contra censo a isso, vendo em mostra as obras, mais uma vez, passados tantos anos, sinto-me bastante feliz.
Em tudo, o mais importante é que percebe-se que as recriações da pirogravura de Nhaca, feita em bordado pela artista São Paixão, foram de acordo com a obra original. Diferem apenas na técnica aplicada, o bordado, mas as imagens, os temas, todo o conteúdo é o mesmo. Por estas e outras razões, fico sem palavras por proferir, além de agradecer a todas as pessoas que se envolveram neste trabalho para homenagear o meu marido.
As palavras são da esposa do malogrado, a senhora Marta Machava, reagindo àquilo que viu no Museu Nacional de Arte, em Maputo, passados mais de dez anos de eterna saudade do seu marido.
Sem fugir do mesmo fio de pensamento, Machado da Graça, observa à luz da recriação de São Paixão às obras de Nhaca. “Aí temos, de novo, as duas versões da Sela de Cristo, as crianças a brincar e todo esse mundo tão envolvente, tão comunicativo, de Jorge Nhaca, culminando com um auto-retrato do artista realizando o seu trabalho”.
E mais, para Machado da Graça, “com grande perfeição e fidelidade à obra de Nhaca, São Paixão mostra?nos como é possível recriar as mesmas obras mas utilizando uma técnica completamente diferente e materiais que nada têm de comum com o que o falecido artista empregava”.
Uma preocupação sempre presente
Desde sempre, resgatar a pirogravura, uma forma de arte cujo desaparecimento está a criar consenso, mostrou-se uma preocupação presente no seio dos protagonistas da mostra “O Bordado de São Paixão”.
“Falei com o curador Jorge Dias e a directora do Musart, Julieta Matsimbe, no sentido de resgatarmos a mostra de Jorge Nhaca, que explorara a pirogravura, sobretudo, porque depois da sua morte nunca mais se fez uma exposição de obras de arte produzida, usando aquela técnica”, conta Maria d’Assunção Perestrello Marques Paixão, ou simplesmente são Paixão.
Conforme São Paixão, o facto de Jorge Nhaca ter recusado o título de artista a favor de um simples artesão, ainda que os seus confrades o considerassem como tal, fez com que a combinação desses factores fosse muito difícil de resgatar a sua obra. De qualquer modo, São Paixão não vergou.
E como Jorge Nhaca era uma artista considerado de rua, até que ele própria dizia que era artesão e, não artista, ainda que nós o considerássemos como tal, ficava muito difícil resgatar a sua arte. De qualquer modo decidi dar a volta por cima das dificuldades.
“Resolvi dar a volta por cima das dificuldades. Eis que me disseram que o melhor coleccionador de obras de arte em Maputo, as de de Jorge Nhaca em particular, era o Machado da Graça. Contactei?o, assim como resolvi inquirir várias pessoas, realizar pesquisas na internet e, assim por diante.
Certamente que o trabalho não foi fácil, mas encontrei gente que recebera as obras de Nhaca a partir de outros cooperantes que, imediatamente se prontificaram em mandar-me a imagem das obras por email. Fui trabalhando assim”, recorda a artista que dedicou dois anos para reinventar a obra de Nhaca em bordado.
Ora a multiplicidade temática de Jorge Nhaca torna difícil a definição temática da sua arte. Por isso, “não produzi todas as imagens das obras recebidas. Como entendi que Nhaca era um artista multi-temático, resolvi replicar uma obra de cada sector, educação, saúde, transportes, a vida na selva, os animais, questões ambientais, como por exemplo, as cheias, a aldeia comunal, por diante”, realça.
Vender as obras
No contexto das suas pesquisas, São Paixão conta que descobriu um conjunto de obras, as últimas produções de Nhaca, escondidas há mais de dez anos. Outras ainda escaparam à venda informal, como muito bem o seu dono o fazia ainda em vida, no princípio de sua carreira.
“Fiquei sabendo que a Senhora Marta, a esposa do malogrado, tinha pedido ao Idasse para pôr as obras a vender, porque ela precisava de dinheiro. Eu estou a falar a realidade. As obras estiveram 10 anos voltadas contra a parede. Escondidas do mundo. Ninguém podia fotografá-las”, diz.
E mais. Segundo Paixão, houve um artista que queria fotografar as obras, cujo nome não conseguimos apurar, que fora corrido do local, onde se encontravam as mesmas. De qualquer modo, “conseguimos resolver o imbróglio entramos em consenso, com a viúva, que se podia vender as obras em melhores condições”.
Mais importante ainda, como São Paixão reporta, é que “começámos a trabalhar no assunto da venda, dando prioridade ao Musart que é uma instituição do Estado. O museu já conseguiu fazer um pagamento”.
Ressaltar a técnica
Numa situação em que a pirogravura esta completamente desaparecida, a mostra do Musart acaba tendo especial enfoque na valorização da técnica. Por isso, nos dias que correm, não somente impera resgatá-la como também estudá-la. Era importante que na Escola de Artes Visuais se voltasse a introduzir o ensino desta técnica para não morrer”, comenta Machado da Graça.
De uma ou de outra forma, além da técnica, o único diferencial, as obras patentes na Galeria do Musart (tanto da de Nhaca quanto as de São Paixão) quando comparadas colocam a nu não somente as similaridades temáticas, mas também a afinidade existente entre ambos.
Sobre esta proximidade, São Paixão recorda que “conheço o Nhaca há bastante tempo. Desde quando andava na rua a vender as suas obras. Tive várias obras suas ao longo da vida, algumas das quais não sei onde se encontram”.
Muita cor no progresso
A pirogravura é uma arte que consiste em trabalhar, na verdade, queimar, na madeira com ferro em brasa. Foi com este tipo de trabalho que Jorge Nhaca se tornou conhecido, tendo produzido desde então várias produções e exposições, duas das quais na Casa Velha, em Maputo.
No entanto, inicialmente, o artista não agregava muitos elementos na sua obra além da própria madeira e os desenhos. Mas numa segunda fase do referido trabalho, a que Machado da graça considera de última, o artista começou a introduzir cor nas suas obras, contrariamente ao que fizera durante muito tempo, em que só trabalhara com o pardo, a cor da madeira.
Ora, “na minha opinião, a introdução de cores vivas nas suas obras valorizou cada vez mais a sua arte.E dentro de quase todas as suas obras há apenas duas/três que me impressionam. A maioria não gosto. Algumas das quais tenho-as na fase em que Nhaca começara a introduzir cor”, afirma Machado da Graça.
A inexistência de repercussores da pirogravura no país, pode resultar do facto de Jorge Nhaca não ter tido discípulos ainda em vida. Mas o que significa ser um seguidor de outrem na arte?
Trata-se de um tema complexo, primeiro porque cada artista é um único. E o que se ressalta na arte de Nhaca é a técnica. Nas artes plásticas, existem muitas técnicas de produção. Na pintura, por exemplo, não diríamos que um artista é seguidor do outro porque pinta. A questão de ser discípulo envolve a forma como o artista trabalha a técnica, o estilo, assim como a forma de abordar os temas.
Em outras palavras, o que aconteceu com a pirogravura é que enquanto Jorge Nhaca vivia e mesmo depois da sua morte, ninguém apostou nesta técnica. Colocar as suas obras pode ser uma tentativa de revelar aos artistas e estudantes de visuais uma técnica, como forma de instigá-lo a queimar a madeira com um ferro abrasador e, produzir arte.