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Parlamento (parece) alheio aos casos de violação das mulheres e crianças

O Código Penal aprovado ainda contém violações dos direitos humanos

Quase que diariamente, são reportados casos de crianças e ou mulheres que são violadas sexualmente, na sua maioria, por pessoas conhecidas ou com ligações próximas às suas famílias. São situações que chocam a sociedade, que pede penas severas para os culpados. Porém, os que pensavam que os deputados tinham o mesmo sentimento e opinião viram as suas expectativas goradas quando o Parlamento aprovou, na generalidade, a proposta de revisão do Código Penal, deixando passar alguns artigos que só favorecem o violador, ao invés de o punirem. E para justificar o descaso, os mandatários do povo dizem que o instrumento ainda vai à discussão na especialidade, onde “tudo” será sanado.

A proposta de revisão do Código Penal, em vigor desde 1886, foi aprovada na generalidade por consenso das três bancadas parlamentares, que também entendem que o mesmo já se mostrava desajustado da realidade actual.

Porém, embora esteja previsto o debate do mesmo na especialidade, durante o qual será analisado artigo por artigo, as organizações da sociedade civil mostram-se preocupadas com o facto de o Parlamento ter deixado passar muitos artigos que atentam, directa ou indirectamente, contra os direitos humanos, no geral, e da mulher e rapariga, em particular, o que, de certa forma, viola a Constituição da República e muitos instrumentos ratificados por Moçambique.

De referidos artigos destacam-se os que abordam as violações sexuais, um crime que tem estado a ganhar contornos alarmantes no país na medida em que ocorrem frequentemente, sendo que muitas vezes é cometido por pessoas com uma relação próximas às vítimas.

Por exemplo, o artigo 223 determina que o violador tenha a sua pena suspensa ao casar-se com a vítima. Para além de agravar o sofrimento em nome da honra da família, o mesmo protege o autor, para além de fazer vista grossa ao crime.

“Com este artigo não se faz justiça às vítimas destes crimes sexuais, como também se revitimiza quem já foi sexualmente agredido, ao determinar/obrigar que se case com o seu agressor. Para muitas delas, isso será um inferno em vida, ao ter de conviver diariamente com o seu agressor. (…) Quando a vítima for menor de idade, também na?o se percebe como e? que se poderá aplicar este artigo, tendo em conta que em Moçambique, tal como em muito outros instrumentos ratificados pelo Estado, a idade núbil e? de 18 anos”, consideram.

O artigo 218, e segundo a lei moçambicana, estabelece que uma pessoa até aos 18 anos é considerada criança, não se percebendo porque é que só os menores de 12 anos são abrangidos por este dispositivo. Para além disso, não considera outras formas de violação sexual, como as relações sexuais por via anal, oral ou a introdução de objectos na vagina e ânus em crianças de ambos os sexos.

Já o artigo 217 só considera violação a “cópula ilícita”, deixando de proteger as mulheres casadas violadas pelos maridos. Também não considera outras formas de violação sexual, como as relações sexuais por via anal, oral ou a introdução de objectos na vagina e ânus em indivíduos de ambos os sexos.

No artigo 24, é permitido que pais, cônjuges, tios, primos e outros parentes alterem ou desfaçam os vestígios do crime com o propósito de impedir ou prejudicar a investigação, ocultem ou inutilizem as provas, os instrumentos ou os objectos do crime com o intuito de concorrer para a impunidade. Este actos podem interferir nas investigações policiais e aumentar a probabilidade de os criminosos saírem impunes.

No artigo 46, pretende-se que uma criança de 10 anos possa ser criminalmente responsável, o que viola grosseiramente os direitos das crianças e representa um retrocesso, pois actualmente a idade da imputação é de 16 anos.

O artigo 222 prevê que nos crimes de atentado ao pudor e violação (com excepção da violação de um menor de 12 anos), os procedimentos criminais tenham lugar após denúncia prévia do ofendido, salvo nalgumas circunstâncias, mas as OSC propõem que este crime seja de natureza pública. “A gravidade destes tipos de crime justifica que o Estado intervenha para garantir a punição do agressor, tendo em conta o bem jurídico a proteger”.

 

“Parlamento deve eliminar alguns artigos”

O que as organizações da sociedade civil pretendem é que, durante a discussão na especialidade, o Parlamento retire ou reformule estes e outros artigos para garantir que os princípios constitucionais e os instrumentos regionais e internacionais ratificados pelo Estado moçambicano estejam espelhados no futuro Código Penal.

 “Há várias formas de discriminação detectáveis no Código Penal ainda vigente, que se reproduzem na proposta aprovada na generalidade pelo Parlamento”, referem as organizações, que dizem ter enviado os seus pareceres às instituições envolvidas no processo de revisão do Código Penal, nomeadamente o Ministério da Justiça e a Assembleia da República.

Outros casos

Para além dos artigos acima mencionados, as OSC dizem ter notado que algumas disposições constantes da proposta não fazem sentido, daí que sugiram que as mesas sejam extirpadas do Código Penal.

É o caso do artigo 230, relativo á prostituição infantil, que reza que serão punidos os menores de 16 anos de idade que praticarem ou estiverem envolvidos nesta actividade. “Parece-nos absurdo que se pretenda incriminar os menores em conflito com a lei, em lugar de criminalizar os adultos que obrigam os menores à prática dessa conduta”.

Mutilação genital

O ordenamento jurídico moçambicano é omisso no que diz respeito à mutilação genital feminina, apesar de o país ser susceptível ao alastramento desta prática, tendo em conta a diversidade cultural resultante do aumento do fluxo de imigração proveniente dos países onde tal procedimento é comum.

“A integração de emigrantes nas comunidades em Moçambique traz consigo o risco de estas práticas nocivas serem adoptadas, pelo que merecem a tomada de medidas preventivas por antecipação”, referem as organizações, que propõem que se acrescente e se considere a mutilação genital feminina um crime hediondo.

O que dizem as deputadas?

Mais do que repudiar o descaso do Parlamento, as críticas das organizações da sociedade civil que estão à frente desta campanha são dirigidas concretamente às deputadas, das quais se esperava uma outra postura, principalmente quando se trata de assuntos que dizem respeito à mulher e à criança.

Consideram (as referidas organizações) que a iniciativa de se opor aos artigos que violam os direitos da mulher e da criança devia ter partido das deputadas, que são as que estão directamente ligadas à revisão do Código Penal, e não o contrário.

Entretanto, quando abordadas pelo @Verdade sobre o assunto, as visadas foram evasivas, refugiando-se na justificação de que a proposta ainda vai ser debatida na especialidade, onde estes aspectos poderão ser retirados ou revistos

“Propusemos a eliminação ou alteração de alguns artigos”, Nyeleti Mondlane

Nyeleti Mondlane, deputada pela bancada parlamentar da Frelimo e presidente do Gabinete da Mulher Parlamentar, foi uma delas. “O documento ainda vai a debate na especialidade”, disse, dando a entender que ainda é prematuro “crucificá-las”.

Por outro lado, Nyeleti Mondlane diz que o gabinete que dirige recomendou “a eliminação do artigo 223, relativo aos efeitos do casamento entre o violador e a vítima, a inclusão do crime de violação nos tipos de crimes considerados hediondos, e a classificação deste crime como público. No artigo 52 propusemos a substituição da palavra “louco” por doente mental”.

Outras deputadas ouvidas pelo @Verdade também julgaram prematura a polémica que se criou à volta deste assunto alegadamente porque o debate do mesmo ainda não está esgotado. “Não se pode dizer que o Parlamento não está atento aos casos de violação da mulher e da criança. A proposta vai, brevemente, ser analisada na especialidade”.

Ainda nesta senda, o @Verdade procurou ouvir também as deputadas da Frelimo, mas estas recusaram-se a pronunciar-se porque, argumentam, a sua bancada tem um porta-voz (Edmundo Galiza Matos Júnior, com quem não nos foi possível conversar), a quem cabe falar em nome do grupo.

“As deputadas não têm noção do mal que est(ar)ão a fomentar”, Ivone Soares

Por seu turno, Ivone Soares, deputada da Renamo, embora diga que não participou nos debates porque se encontrava em viagem, foi a única que deu a mão à palmatória e reconheceu que os seus pares cometeram um erro sem precedentes, apesar de ainda restar uma oportunidade para o corrigirem.

 “Como mulher, jovem e sabendo o sofrimento por que passam as mulheres e crianças vítimas de violações e agressões, não consigo conceber que os violadores (pais, tios, vizinhos, entre outros) saiam impunes. A sociedade deve opor-se a leis que permitem que tal aconteça, neste caso o Código Penal em revisão. Não se deve negociar com um violador. Dizer que ele deve casar-se com a vítima é negociar. Isso é dar bónus ao violador para que ele cometa o crime por mais cinco anos”, considera.

Ivone Soares, que acha legítima a preocupação da sociedade civil, é da opinião de que o facto de as deputadas terem feito “vista grossa” a estes aspectos “é sintomático de que algo não vai bem, embora a proposta de revisão tenha sido aprovada apenas na generalidade. Talvez seja necessário organizar uma mesa redonda para que elas (as deputadas) tomem consciência do mal que poderão estar a fomentar”.

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