No primeiro gole a goela parecia um recipiente sem fundo. O homem segurou o copo como se segurasse um remédio para todas as mágoas do mundo, com as duas mãos. Num gesto esvaziou meio copo. Fez uma curta pausa, recuperando o fôlego, enquanto contorcia os músculos do rosto denunciando a acidez do líquido. O segundo gole veio com a mesma pressa e sorveu tudo, de tal forma que o terceiro gole foi só para minhetar. Os lábios, colados à borda do copo, assobiaram quando sorveram o ar. Percebia-se que não havia sede naqueles goles, havia sim urgência.
As mãos caíram para o balcão, o copo bateu na madeira do tampo. O empregado de bar percebeu a mensagem. No segundo e terceiro copo ainda parecia uma esponja. Sorvia como se quisesse se afogar.
Gradualmente o ritmo da gula foi baixando. Aos poucos entrou para aquela fase em que se esquece de beber e fi ca-se a olhar para o copo, procurando lembranças. Estava de pé, com o cotovelo cravado no tampo do balcão, a cabeça inclinada, deitada na almofada da palma da mão, olhando para a transpiração do copo, ou para as luzes que se desenhavam no refl exo irrequieto do líquido.
Aos poucos, naquelas fi guras, veio-lhe a imagem dela, decidida, de malas e cestos, parada diante da porta. “Vou-me embora!”, atirou-lhe. Aquela frase caiu-lhe com a mesma violência que uma chapa de zinco se despe da cobertura em noite de temporal, deixando a nú os barrotes dos seus sentimentos. Olhou para o copo como se olhasse para ela: – Porquê? – escapou-lhe a voz quando falava com os pensamentos, chamando atenção do barman e de uma barata que espreitava suas antenas por uma fresta do balcão envelhecido.
Antenou o indicador e estalou os dedos, aquele gesto mudo com que na gíria das tascas se pede mais um copo. Experiente em assuntos de bar, o empregado sabia que aquele trabalho era muito mais do que servir apenas bebida. Ele servia atenção e paciência aos desabafos dos clientes. Aproximou-se do homem que conversava com o copo, secando com um pano o tampo do balcão. O homem levantou o copo para que o outro passasse o pano e aproveitou para dar um gole. Um gole formal, sem a mesma convicção dos primeiros.
– É o quê compadre, está muito pensativo – introduziu o empregado de bar, era assim que se tratavam.
– Amarga, amarga muito compadre – respondeu o homem, levando de novo o copo à boca.
– O quê que amarga compadre? A bebida?
– A vida – deu o último gole e pousou o copo batendo no tampo, de modo que se percebesse que estava vazio – a vida amarga compadr e.
– Bebe compadre, isso passa – respondeu o empregado de bar, enchendo- lhe o copo.
– Sabe, há tristezas que não se diluem, nem com álcool – deu um gole. O empregado de bar deixou-se fi car calado. Sabia que homem não precisava ouvir, precisava ser ouvido.
– Ela, compadre, ela… – fez-se silêncio. No tecto uma ventoínha velha fi ngia que girava. A luz era frouxa e os mosquitos passeavam impunes. O homem deu um gole gordo e continuou – Ela foi-se embora. De malas e tudo.
– Como foi-se embora? Mulher não vai embora, manda-se embora. Quem lobola afinal?
– São outros tempos esses. Esses valores estão todos emancipados – lamentou o homem, abanando a cabeça.
– Mas foi-se embora sem mais nem menos? Assim do nada?
– Ela diz que está cansada de viver de bips.
– Chegaram a conversar? Ouve discussão?
– Ela não quer falar. Diz que a minha rede é fraca, não dá para falarmos.
– Mas compadre, a rede está fraca? – segredou a voz o empregado de bar, e aproximou-se mais, coçando a nuca, sinal de discrição – há umas raízes que podem resolver.
– Nãaaao! – sobressaltou-se, quase entornando o copo –, a minha rede está em dia. Foram só umas avarias passageiras.
– Já tentou ligar para ela?
– Não adianta – tirou do bolso um telefone, completou a ligação com os dedos trémulos e pôs o telefone no ouvido do empregado –, oiça.
O empregado ficou sem palavras para consolá-lo quando ouviu, do outro lado da linha, uma voz que parecia saber o que dizia: “Neste momento não é possível estabelecer o diálogo que deseja. Por favor, não ligue mais”. Ofereceu o ombro e os ouvidos, e fi cou ali a noite toda partilhando as dores do cliente amigo, que não parava de lamentar:
– Ela diz que para onde vai está TUDO BOM. Que para ESTARMOS JUNTOS tinha de estar TUDO BOM conosco…