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Os vizinhos do Presidente

Os vizinhos do Presidente

São, no total, sete pessoas – incluindo uma criança de apenas três anos – que, por falta de um tecto, dividem um minúsculo espaço debaixo de um contentor que serve de armazém de material pertencente a uma empresa de construção que se encontra a erguer um edifício nas proximidades da Presidência da República.

Com idades compreendidas entre os 25 e os 29 anos, eles foram chegando um a um e com histórias diferentes, mas quis o destino que eles se juntassem no ano de 2004 numa vivenda abandonada – e inóspita –, no terreno onde está a ser construído um prédio.

Mas não foi por acaso que eles foram convergir naquel lugar: a vivenda abandonada, embora não oferecesse condições de habitabilidade, representava o fim de dias passados em claro, onde o céu era o tecto, o papel a cama e os sacos as paredes.

Reza o adágio popular que “alegria de pobre dura pouco”, e com eles não foi diferente pois a “hospedagem” na vivenda foi interrompida no mês de Abril deste ano quando a empresa de construção quis erguer, no seu lugar, um edifício para habitação e escritórios. E, para tal, tinham que desocupar o local.

Foi o (re)início do “inferno”, diga-se, onde a única vantagem é ser vizinho do Presidente da República. Não tiveram nenhuma recompensa (embora não tivessem direito) da parte da construtora e, muito menos, do proprietário do espaço. Estes não moveram uma palha sequer em prol deste grupo.

A única solução que lhes ocorreu foi “improvisar” o pequeno espaço por baixo do contentor colocado por cima de um atrelado pela empresa encarregue de construir o prédio. O contentor passou a ser o tecto e as paredes passaram a ser feitas de caixas e lençóis, num espaço com menos de cinco metros quadrados para sete pessoas.

Viver da recolha de garrafas e de restos de comida

Não é só o tecto que falta a estes sete indivíduos. Eles fazem eco aos cidadãos que se queixam do desemprego, um dos problemas com que a nossa sociedade se debate. Mas isso não os impede de se fazerem à rua à procura do seu ganha-pão, uma tarefa árdua e que exige, acima de tudo, muita perseverança.

O exercício começa nas primeiras horas do dia e consiste em circular pelas barracas e contentores espalhados pela cidade à procura de garrafas de 300 mililitros, vulgarmente conhecidas por pequenas, para as revender. Esta actividade é pouco rentável pois eles só ganham 10(dez) meticais em cada 100 garrafas vendidas.

Com esta actividade conseguem ter, ao fim do dia, trinta meticais. “Com o dinheiro compramos açúcar e pão para tomar chá. Não compramos carvão porque o dinheiro não chega, usamos plásticos, caixas e cafuros (restos de coco depois de ralado) para confeccionar os alimentos e há vezes em que estes não cozem”, dizem. A comida é confeccionada em pequenas latas devido à falta de panelas.

Especialistas recomendam que um indivíduo tenha, ao menos, três refeições por dia, designadamente mata-bicho, almoço e jantar, mas para este grupo isso não passa de um sonho. “Nós nem panelas temos, confeccionamos os nossos alimentos em latas. Só temos uma refeição por dia”.

O chá é a sua principal refeição e, por vezes, a única. Esta realidade só muda quando “vizinhos” e pessoas de boa- -fé passam pelo local e oferecem- lhes comida, dinheiro e outros bens necessários à sua subsistência.

Outra fonte de receita é a venda de revistas e garrafas de plástico recolhidas nos contentores, onde encontram outros objectos além destes, incluindo comida. “Temos necessidade de apanhar restos de comida nos contentores, é impossível viver de uma refeição por dia. Sabemos que isso tem consequências, mas a vida não nos oferece outra alternativa. Não temos escolha”, contam.

Por vezes são chamados para fazer biscates tais como limpeza, podar árvores, lavar e/ ou guardar carros, dentre outros trabalhos.

Usar a zona das barreiras como casa de banho

Para a satisfação das necessidades biológicas eles são obrigados a recorrer às barreiras da Maxaquene, que distam mais de 200 metros e tomam banho ao relento, sem nenhum pudor. Mas, como é óbvio, não o fazem de dia, mas sim de noite, o que os obriga a abdicarem do sono pois as pessoas circulam até pouco depois das 23 horas, o que significa que só podem tomar banho depois desta hora.

A água, que serve igualmente para consumo e para cozinhar, é-lhes fornecida pelos operários da obra em recipientes de cinco litros.

Nenhuma estação é favorável

Se viver na rua já é considerado difícil, estar propenso às intempéries é pior ainda. Quando chove a situação torna- se crítica: as caixas, que servem de camas, molham-se e, quando há ventania, os sacos que servem de protecção/ paredes são destruídos.

“No Inverno sofremos muito porque não temos mantas e no Verão contraímos malária e outras doenças associadas por causa dos mosquitos. Não temos redes mosquiteiras”.

A questão dos mosquitos é agravada pelo contentor de lixo que o município colocou bem ao lado donde este grupo vive. O referido contentor, para além servir de foco de reprodução de mosquitos, exala um cheiro nauseabundo devido ao lixo e à urina. Eles inalam este odor todos os dias.

Polícia, … sempre a polícia!

Se a vida deste grupo já é triste, a (nossa) polícia, a quem foi confiada a tarefa de nos proteger, independentemente da condição social de cada um de nós, faz questão de a tornar mais difícil. Tendo em conta os relatos que têm sido reportados pelos órgãos de comunicação, o estranho seria os agentes da polícia aparecerem nesta história como heróis.

Eles aparecem sempre como o vilão da história! Segundo contam, a polícia tem-lhes feito visitas quase que regulares com o objectivo de lhes agredir, ameaçar e, por vezes, prender sem motivo. Nem a vida de uma criança inocente de apenas três anos lhes sensibiliza. É de lembrar que as crianças eram tidas, pelo primeiro Presidente da República, Samora Machel, como as “flores que nunca murcham”.

“No mês passado (Agosto) queimaram-nos tudo o que tínhamos, a roupa e os documentos da criança (certidão de nascimento e ficha do hospital). Queimaram inclusive o xarope do meu filho, ele anda com gripe. Vi os agentes que fizeram isso, eles são da 2ª Esquadra, posso apontá-los e fiz questão de fixar o nome que vinha na placa do agente que queimou os documentos e o xarope do meu filho”, desabafou Brás Chirindza, pai da criança, com o rosto coberto de lágrimas de revolta e angústia à mistura.

Alias, “não só queimaram a roupa. Queimaram também os cobertores da criança, que tinham sido oferecidos por uma senhora branca que, ao ver a situação na qual vivemos, decidiu doar um enxoval ao meu filho. Isso foi no Inverno”, concluiu.

Neste momento o objectivo é conseguir tratar, de novo, os documentos do pequeno José e levá-lo à consulta pois ele não pára de tossir já faz muito tempo, e adquirir cobertores pelo menos para a criança.

No princípio a polícia dizia que o local por eles ocupado não era adequado e tinham que ir viver nas barreiras, mas estes recusaram-se alegadamente porque o único objectivo da polícia era encontrar quem pudesse responder pelos assaltos que têm sido protagonizados naquele local. “Nós não aceitámos, o que eles queriam era um bode expiatório, e isso tem-nos custado muito caro.

Já fomos parar às celas e à Cadeia Civil sem termos cometido nenhum crime e, pior, sem nenhum processo. A última vez que lá estivemos ficámos mais de um mês”, denunciam.

Os agentes da Presidência da República são tidos como “os bons samaritanos”. Por vezes trazem-nos comida e quando um de nós adoece é a eles que recorremos.

Quando não estão disponíveis, pedimos ajuda aos agentes afectos ao Tribunal Administrativo. Eles não têm problema, fazem as suas patrulhas à vontade e cumprimentam- nos, alguns conversam connosco sem nenhum problema”.

Brás Chirindza, de 28 anos

Ele é o pai do pequeno José, filho que teve com Isabel Fumo, com quem vive hoje. Está nas ruas há 18 anos. Nasceu e passou parte de sua infância no bairro Triunfo. Vivia com o seu pai, a sua madrasta e dois irmãos mais velhos.

Por influência dos seus irmãos, começou a trabalhar muito cedo. “Guardávamos carros no mercado da Costa do Sol e os meus irmãos carregavam sacos no mercado Janeth. O meu irmão, não sei porquê, levou-me para as ruas mas o meu pai foi buscar-me e espancou-me. Voltei às ruas e quando voltei para casa o meu pai tinha espancado a minha madrasta. Ela denunciou-o e ele, por temer as consequências do seu acto, fugiu”.

Os seus dois irmãos morreram – um na cadeia e outro, vítima de tuberculose – e a madrasta arrendou a casa e não quer saber do seu enteado, o Brás. “Sempre que tento falar com ela conta-me histórias. A última vez que falei com os inquilinos estes mandaram-me prender alegadamente porque eu tinha furtado mil meticais e outros bens.

Fiquei uma semana nas celas da esquadra e saí porque a minha madrasta pediu que eles – os inquilinos – retirassem a queixa. Desisti de tentar falar com ela”, conta.

Isabel Fumo, de 28 anos

É natural do distrito da Catembe e saiu de lá alegadamente porque a família da mãe a maltratava. A mãe morreu na província de Niassa, onde o marido, pai da Isabel Fumo, se encontrava a cumprir a Operação Produção.

“Fugi da Catembe em 2001, na altura estava grávida do meu primeiro filho. Sei onde a minha família paterna vive, mas eles não gostam de mim não sei porquê. Até a minha avó deu-me um terreno, se eu tivesse condições erguia uma casa e deixava esta vida da rua”, diz.

Para além do pequeno José, de 3 anos, Belinha, como é carinhosamente tratada, é mãe de mais três filhos de 12, 10 e 6 anos. Todos vivem, por ironia do destino, em centros de acolhimento. Eles estudam e o mais velho frequenta a 6ª classe.

Vasco Mucavele, de 25 anos

Nasceu no distrito de Chókwè, província de Gaza, e não conheceu os pais pois estes perderam a vida muito cedo. Foi criado pela avó materna na sua terra natal, onde se encontra até hoje. Tem um irmão que não vê há mais de quatro anos.

Veio à cidade de Maputo com 23 anos à procura de melhores condições de vida mas a sorte não lhe sorriu. “Gostava de regressar à minha terra natal, Chókwè, mas não tenho condições.

Já pensei nisso e até já tinha começado a preparar algumas coisas tais como lençóis, cobertores e utensílios, não posso chegar de mãos a abanar, mas a polícia veio e queimou tudo. Se aparecer alguém para me criar essas condições, eu posso voltar sem pensar duas vezes. Esta vida não me vai levar a lado nenhum”, diz.

Dário Adriano, de 29 anos

A história deste jovem é mais triste ainda pois, para além de viver na rua, é seropositivo, embora não aparente. Quem não o conhece pode pensar que é uma pessoa saudável. Nasceu em Maputo e é órfão de pai e mãe. Está nas ruas desde 1993, ano em que contraiu a doença. Foi criado pela avó, com quem viveu até os 11 anos. Não conheceu o pai e a mãe morreu de HIV/ SIDA.

Diz que saiu de casa por problemas de ordem familiar, nada na sua vida dava certo. “Sempre que arranjava emprego deixava-o. Levaram-me aos curandeiros, mas tudo continuou na mesma. Sei onde vive a minha família, em Maxaquene. Tentei voltar para casa mas não consigo ficar lá por muito tempo, não sei porquê”, conta.

Em relação ao seu estado, Dário diz que não tem tido uma alimentação adequada, apesar de ser condição essencial para que pessoas seropositivas tenham uma vida saudável.

Por vezes tem de pedir a pessoas desconhecidas para que lhe comprem medicamentos na farmácia por falta de dinheiro.

“Há vezes em que tenho de mostrar as receitas para que as pessoas acreditem. Nesta condição – de mendigo – ninguém acredita em mim/ nós”. Passa a vida a guardar carros e a recolher comida nos contentores.

A ex-mulher, com quem teve um filho, recusa-se a fazer o teste, embora já saiba que ele é seropositivo. O filho vive com a avó e Dário tem ido visitá-lo frequentemente.

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