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Os mendigos que se tornaram sapateiros

Num passado recente, Raimundo dos Santos, Manuel Levecha, Jaime Atelauaia e Cassamo Ali faziam parte de pessoas que, devido às suas condições físicas, perambulavam, todas as sextas-feiras, pelas ruas da cidade de Nampula para mendigar o que comer. Frequentavam as artérias daquela urbe e recorriam à compaixão dos transeuntes e dos proprietários de algumas lojas, sobretudo de comerciantes muçulmanos.

Na verdade, esses cidadãos não são aqueles que utilizavam um pedaço de jornal como cobertor, nem papelões e lonas como parede de uma residência improvisada e tão-pouco pernoitavam nas praças, nos edifícios em ruínas e noutras esquinas porque não eram moradores de rua. A rotina desses indivíduos era casa-rua e vice-versa e, através desse hábito socialmente condenável e desencorajado pelo Governo, asseguravam o sustento dos seus dependentes.

Da conversa que o @Verdade manteve com Raimundo, Manuel, Jaime e Cassamo constatou que, apesar de não ter sido por iniciativa própria desistir de viver de mão estendida, eles são um exemplo a seguir para impedir que outras pessoas que se encontram nas diversas praças do país, sem rumo certo, entrem no mundo das drogas, da criminalidade e da prostituição alegadamente por causa do desemprego e de outros problemas sociais.

Um dia, os nossos interlocutores aperceberam-se de que a mendicidade era infame e que as suas limitações corpóreas não lhes impediam de exercer alguma actividade digna de geração de renda. Por isso, movidos pelo desejo de recuperar a auto-estima e de se verem livres da vergonha a que estavam expostos na rua, não pouparam os seus esforços e abdicaram da actividade de pedintes para se dedicarem à sapataria.

Raimundo, Manuel, Jaime e Cassamo, que deixaram de integrar o grupo de idosos, jovens e crianças que, às sextas-feiras, se concentrava junto aos estabelecimentos comerciais para pedir esmola, disseram-nos que o dinheiro com que iniciaram o negócio é uma doação de uma organização não-governamental italiana chamada AIFO e conseguiram o financiamento graças à ajuda de um terapeuta que lhes auxiliava nos exercícios físicos no Hospital Central de Nampula.

Quando o projecto desenhado pelos nossos entrevistados foi aprovado pela instituição a que nos referimos, no princípio, trabalharam numa fábrica de luvas e sapatos para pessoas leprosas como forma de adquirir experiência antes de se dedicarem ao negócio por conta própria.

Passado algum tempo, Raimundo, Manuel, Jaime e Cassamo trabalharam de forma independente numa sapataria já criada por eles. Actualmente, eles orgulham-se do sucesso que têm obtido e estão a formar outros cidadãos que são também deficientes físicos. Estima-se que pelo menos 20 pessoas deixaram de depender de terceiros graças a essa iniciativa.

Hoje, esses compatriotas estão seguros de que não necessitam de frequentar as ruas para sobreviver porque os rendimentos obtidos das suas lojas de calçado satisfazem as necessidades básicas das suas famílias.

Aliás, as pessoas a que nos referimos afirmaram ainda que estão a expandir as suas actividades de tal sorte que compraram algumas máquinas de costura que, neste momento, estão a ser utilizadas na formação de mulheres na condição de deficiência física.

Entretanto, os empreendedores queixam-se da falta de dinheiro para montar uma indústria de sapatos, o que permitiria empregar mais gente em situação de vulnerabilidade.

Manuel Levecha, de 36 anos de idade, natural do distrito de Ribáuè, disse-nos que sabe consertar calçados desde 1998, altura em que perdeu a oportunidade de estudar devido à falta de condições. E por reconhecer que a vida de um pedinte é desonrosa, alimenta vontade de ajudar as pessoas que deambulam pelas artérias de Nampula e sem o que comer. Contudo, enquanto não arranja fundos para materializar esse sonho, o cidadão ocupa-se da formação de outros outras pessoas.

“Não é uma coisa fácil instruir e moldar um indivíduo já crescido, é preciso um trabalho contínuo. Gostaríamos de transformar a vida dos nossos compatriotas e tirá-los da mendicidade, principalmente os vários deficientes que se encontram nas ruas da cidade de Nampula mas ainda não temos meios”, disse Manuel.

Jaime Atelauaia, de 48 anos de idade, casado e pai de seis filhos, também abandonou a esmola para consertar calçado, um ofício que aprendeu em 1994. Assegurou- nos que a sua vida mudou bastante desde a altura em que teve o apoio da AIFO.

Cassamo Ali, de 24 anos de idade, afirmou que reside no bairro de Muatala, dependia da mendicância para sobreviver e aprendeu a consertar sapatos para ganhar dinheiro de uma forma digna. “Neste momento a minha luta é comprar uma carinha de rodas para me locomover e acredito que através do meu esforço vou conseguir ter esse meio de transporte.”

Ouviu insultos por ser pedinte

Raimundo dos Santos, de 47 anos de idade, natural da província da Zambézia, é casado e pai de cinco filhos. Partiu da sua terra natal para a cidade de Nampula à procura de melhores condições de vida mas experimentou dificuldades e recorreu à mendicidade como alternativa para sustentar a si e a sua família. Para se alimentar dependia da boa vontade dos transeuntes, tendo esse sacrifício durado dois anos.

O nosso entrevistado declarou que tem uma memória triste das humilhações por que passou na rua, uma vez que algumas pessoas, talvez, ignoravam ou desconheciam o provérbio que diz que “quem dá esmola silencioso, cumpre melhor o seu dever.”

“Ouvi insultos, fui ofendido e discriminado, foi uma experiência amarga. Por isso, quando tive a oportunidade de mudar de vida não hesitei. Os primeiros dias do meu ofício também não foram fáceis, trabalhei exposto ao sol e levei muito tempo a angariar clientes porque poucas pessoas acreditavam nos meus serviços e nas minhas capacidades. Por semana ganhava, no máximo, 50 meticais mas isso já está ultrapassado, pois por dia colecto mais de 100 meticais”, concluiu dos Santos.

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