Tu acordas depois de oito horas de sono sobressaltado, entrecortado por momentos de vigília durante os quais desejaste mergulhar no descanso profundo, mas o teu corpo não quis ou a tua cabeça não deixa, ou o teu coração não sossega e por isso já não sabes bem como era.
Lembras-te de que era bom, lembras-te de que foi bom, que o verbo, como tantas vezes acontece, não voltará a ser conjugado em nenhum outro tempo que no pretérito perfeito. Levantas-te, doem-te os ossos, os olhos, as pálpebras e as articulações.
Doem-te os músculos da cara e as costas das mãos. E também os gémeos e os antebraços. No pescoço, junto à nuca, sentes uma corda invisível que te repuxa a raiz dos cabelos e se roça como um fio debaixo das orelhas.
Levantas-te porque é dia, porque sabes que se não te levantares ainda é pior; podes perder o autocarro, o emprego, o subsídio de férias e o décimo terceiro mês, a caixa de previdência e o direito à reforma. Mas às vezes apetece-te deitar tudo a perder e passar para o mundo dos doidos, dos indigentes, dos excluídos e aprender a viver da esmola e da caridade alheia.
Há vidas muito piores do que a tua. Há pessoas que nem um tecto têm. Outras que estão doentes, que nunca conheceram os seus pais, que cresceram sem liberdade. Na Índia há dezassete milhões de crianças amarradas a teares. Começam a trabalhar aos quatro anos, só os desamarram aos 14, quando já têm corpo para outros trabalhos. Dezassete milhões é muito, não é? Na China, ninguém sabe quantos são. Calcula-se que sejam muito mais.
Então tu pensas que o mundo é uma merda, que o progresso só serve para separar o mundo dos ricos do mundo dos pobres e até tens sorte porque nasceste pobre, mas pelo menos nasceste do lado bom, onde há mais crianças na escola do que amarradas a teares, embora em bom rigor não saibas bem onde reside a verdade dos números.
Mas és mais um número numa sequência impessoal, uma pequeníssima peça numa engrenagem gigante e se desaparecesses, ninguém choraria a tua morte, porque a tua maior pobreza não reside no teu salário magro da repartição, nos fins de tarde a assistir às partidas de futebol pela televisão enrolado numa manta para poupar na conta da electricidade, nem nas infinitas vezes que recusas os convites dos teus colegas de secção para ir beber uma cerveja ao fim da tarde na marisqueira da esquina para não esbanjar o que, quase por milagre, consegues poupar.
A tua maior pobreza, como acontece a tantos outros seres humanos perdidos no mundo, chama-se solidão e acredita: mesmo se fosses rico, continuarias a ser muito pobre, porque não tens ninguém a quem dar amor, nem sequer alguém de quem recebas afecto. Apenas algumas pessoas que te dão momentos de amizade, como quem distribui gomas às crianças numa festa de aniversário. Não tens a quem dar nem quem te dê, é isso que faz de ti um pobre, porque a riqueza está na partilha, mesmo quando nos cansamos de dar.