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Onde o Judas perdeu as moedas

Khongolote

Condenados a um futuro sem esperança, os meninos de Khongolote preenchem o dia à caça de moedas perdidas nas paragens mais movimentadas de chapas que ligam aquele subúrbio à cidade de Maputo.

A luz do dia encarrega-se de expor a miséria das casas e das crianças que habitam Khongolote, o bairro que ficou recentemente famoso devido ao boato de um suposto homemcão, ou simplesmente, lobisomen que atacava pessoas pela calada da noite. Os antigos altifalantes com íman embutido, que servem de arma perfeita para caçar as moedas, vão arejando no pátio poeirento onde estão sentados, descalços, e com semblantes que denunciam mais um dia passado a enganar a fome, rapazes entre os sete e os 15 anos de idade. Viemos interromper um frugal pequeno-almoço de pão seco empurrado com água fria. O ar da manhã dilui-se numa miscelânea de ruídos de carros e de gente e no cheiro ácido de gases que escapam de um dos cajueiros, convertido em latrina a céu aberto.

Os passeios das ruas, ainda sem nome, converteram-se no local de trabalho para centenas de crianças à deriva. Não é preciso ser especialista para perceber que o álcool e o tabaco são os parentes que lhes dão amparo. A bebida e o cigarro são, afinal, o mar onde afogam a tristeza por não viverem com pais e não poderem ir à escola como outros meninos da sua idade.

 

Uma triste história igual a muitas

 

Paíto e Vitó – é assim que gostam de ser chamados – têm 12 anos e são “irmãos” dessa rua da amargura. Para além da idade têm outra coisa em comum: são órfãos de pai. Diante de uma resposta crua como esta dá para o leitor perceber que as suas biografias devem ser iguais às de outros meninos que vivem no Khongolote e no outro lado do Moçambique real. Paíto perdeu o pai aos cinco anos. Ao invés, Vitó não sabe como nem quando o bom Deus levou o seu progenitor.

Sem sorrir, como quem adivinha que provavelmente nunca terá motivos para estar feliz, Paíto conta que, depois da morte do pai, a mãe voltou a casar. Porém, o novo companheiro recusou-se a ampará-lo. Como consequência disso “eu e a minha irmã de 16 anos fomos viver com nossa avó”. Idosa e já com poucas forças, para lhes prover pão, a avó migrou para cidade de Maputo, donde só regressa em Dezembro. Sozinhos tiveram que se desenrascar: ela trabalha como empregada doméstica algures no grande Maputo e ele como catador de moedas no bairro. E, desta forma, com a actividade de catar moedas, Paíto tornou-se o “homem da casa”, sustentando seis membros da família.

Nos dias em que a sorte sorri consegue arranjar 20 meticais. “Por isso não vamos à escola ”, esclarece Paíto, agora um pouco mais descontraído, num português de muitos “sim, sim”, “não, não” e “muito, muito”. Vitó, acenando a cabeça há meses por cuidar, revela-se um pouco mais acanhado, limitando-se a corroborar a opinião do irmão de rua. Como não estudam, também não sabem o querem ser quando forem grandes. O mais provável é acabarem desempregados ou ninjas. Ou talvez, enfermeiros Paíto e Vitó profissão com que mais sonham, eles e tantos outros meninos da sua idade e condição mas o caminho é difícil e cheio de obstáculos. O mais certo, face à exposição a tão altos riscos sociais, é a marginalidade.

 

Qualquer coisa serve para sobreviver

 

Sábado, dia 28, foi certamente um desses dias em que a turminha do Jojó não tinha carros para lavar. Nem moedas para catar. Por isso encontrámo- los a laborar numa obra de construção civil. São cinco amiguinhos: para além do Jojó, há o Gueu, o Tó, o Nené e Domí– diminutivos de Jorge, Guilherme, Tomé, Nélson e Domingos.

Está um sol abrasador, mas Jojó acarreta água proveniente de uma torneira montada a alguns metros. O Gueu participa no carregamento de cimento. Enquanto o Tó e o Nené esperam, protegidos pela sombra de um cajueiro, a oportunidade de receberem alguma tarefa que lhes permita juntar mais uns cobres. “ Uma vez ganhamos 200 meticais por lavarmos carro de um titio que veio cá visitar um amigo”, recordase Jojó, 12 anos, o mais velho, por isso chefe do grupo.

Tal como eles, dezenas de outras crianças do bairro têm um passado comum: Abandonaram a casa dos pais para fugir aos maus tratos. Todos partilham o mesmo drama: quando olham para o futuro enxergam uma miragem. Então, a única coisa a fazer é tentar fingir que se esqueceram do passado e viver o presente um dia depois do outro. “Gosto de ficar aqui”, refere, sem hesitar, Jojó, muito aplaudido pelos restantes, como se uma lotaria milionária tivessem ganho.

São centenas, mas o grupo mais visível é o comandado por Diogo, cuja mãe, Luísa Khossa, 43 anos e dona de uma banca onde revende pão, já se cansou de açoitá-lo na esperança de persuadi-lo a abandonar a rua e a voltar para escola. “Estou cansada”, refere Luísa que tentou unir outras mães no combate a este novo síndrome chamado moedas que o Judas perde. Tudo em vão. “É muito difícil e quando chegamos à fase de bater-lhes, eles rebelam-se e reagem com violência.” Violência que pode ser só o começo.

Shareef Malundah, sociólogo a trabalhar na área da adolescência, reconhece que o Governo está a tentar resolver o problema mas recusa-se a acreditar que sejam suficientes as políticas e projectos que implementa para este grupo social. Enquanto, isso eles estão exposto a altos riscos, uma vez que a porta da marginalidade está praticamente aberta.

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