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O que faremos depois de descobrir a beleza da nossa cultura?

O que faremos depois de descobrir a beleza da nossa cultura?

Além das suas incontáveis proporções provocadoras (o que incita o espectador a reflectir na sua condição social), “As Trinta Mulheres de Muzeleni”, a obra teatral do célebre dramaturgo moçambicano Lindo Nlhongo, será – para muitos moçambicanos – uma autêntica descoberta da beleza da nossa cultura. Nela está contida parte essencial da nossa história. Descubra, esta sexta-feira, no Cine África, em Maputo, o seu impacto…

A discriminação racial, os massacres, a exploração e a dominação do homem pelo homem – factos característicos da época colonial – encardiram a “história dos descobrimentos”. Por isso, alguns povos (senão todos) não têm orgulho de terem sido, supostamente, descobertos por alguém. Disso, os brasileiros e índios são exemplo.

Ora, passados cerca de 40 anos, numa nação que em 2012 irá celebrar 37 de independência, nada nos impede de afirmar que para muitos moçambicanos – nascidos depois de 1975 – assistir a qualquer obra teatral que tenha sido realizada antes do referido tempo seja uma autêntica novidade. “As Trinta Mulheres de Muzeleni” não é excepção à regra.

A obra que foi readaptada, revestida de nova imagem e com novas personagens passa a chamar-se “O Lobolo e as 30 Mulheres de Muzeleni”.

Recorde-se que, naquele período Os Noivos ou Uma Conferência Dramática Sobre o “Lobolo e As Trinta Mulheres de Muzeleni”, as obras de Lindo Nlhongo foram realizadas sob a direcção cénica de Norberto Barroso (1970 – 72) na sua estada de dois anos em Moçambique.

No entanto, o importante a reter no “Lobolo” é que, já naquela altura, as suas proporções provocadoras para a necessidade de se despertar e (re)pensar nos problemas contemporâneos do povo incomodavam o sistema vigente, o colonial. Afinal, reitere-se, despertava nos moçambicanos um espírito reflexivo E crítico que propiciava o advento de necessárias transformações sociais.

Caso o teatro e a arte no geral fossem inertes (como o fraco apoio, que lhes é dispensado por quem de direito inclusive nos dias actuais, transparecem) como é que se explica que, imediatamente, a PIDE se tenha preocupado em ofuscar a divulgação das referidas obras?

A verdade é que em “As Trinta Mulheres de Muzeleni”, uma peça teatral com inúmeras vertentes de interpretação, Lindo Nlhongo analisava a questão do Lobolo, (ou seja, o dote destinado à família da pretendida), contestando a maneira tradicional de estabelecer o casamento. E, talvez, os choques existentes entre as culturas europeias e africanas na concepção do matrimónio.

Aliás, nos diversos campos da vida social, os colonos “não queriam que os negros tivessem a sua própria identidade. Eles desprezavam os nossos hábitos”, denunciara em certa ocasião Nlhongo. Como tal, o maior perigo ? adjacente à obra ? para o sistema colonial era uma temática africana, qualquer “coisa de escola” e pedagógica, como acrescenta Neves, que não se devia deixar proliferar em Moçambique.

Lucrécia Paco na direcção cénica

A introdução que se faz em relação à obra, “As Trinta Mulheres de Muzeleni” tem particular importância, sobretudo porque, parte importante da nossa história de produção cultural e de existência como povo – e do teatro em particular – repousa em “Muzeleni”. O Festival Marrabenta que resgatou a obra, trazendo-a em cena, não somente recuperou a nossa herança cultural como também procura (re)valorizá-la, respondendo a alguns desafios da vida contemporânea.

Com uma dimensão intemporal, “As Trinta Mulheres de Muzeleni” vão a exibição na noite de hoje, sexta-feira, 27 de Janeiro, no Cine Teatro África, sob a direcção cénica da conceituada actriz moçambicana, Lucrécia Paco. Um elenco de cerca de 50 pessoas – entre actores, bailarinos, músicos, etc. – colocará o seu talento ao serviço da obra. Há quem já pensa que será a festa do ano.

Como tal, desta vez, com novos rostos e cenários teatrais, a obra, um Teatro Musical, chama-se “O Lobolo e as 30 Mulheres de Muzelei”.

Será colocada em montra cénica uma confrontação entre algumas tradições, usos e costumes – acima de tudo a poligamia – vividos e protagonizados pela figura de Muzeleni. Aliás, refira-se, este papel reservou-se a Davido José, actor, professor de história e dramaturgo que vezes sem conta nos tem brindando com as suas criações, uma das quais “Culpado?”.

Recupera-se, em “O Lobolo”, um momento do passado (?) em que a cultura, a tradição e a religião se confundiam, ao mesmo tempo que serão confrontados com a vida actual nas sociedades africanas modernas.

É que, nos dias que correm, a poligamia que se aborda em “O Lobolo e as 30 Mulheres de Muzeleni” gera um conflito de valores entre Muzeleni – o conservador – e os seus descendentes que experimentaram novas realidades, as ocidentais, como resultado da evolução tecnológica. Em parte, o encontro com o novo, o outro, o do outro, é apontado como sendo responsável pela desconsideração da tradição africana pela perspectiva conservadora.

30 para 03, com tanto misticismo…

Se a coincidência é casual pouco se sabe. O facto é que a celebração dos cinco (05) anos da Música Popular Urbana Moçambicana – a Marrabenta – será carregada de algum simbolismo e (porque não?) misticismo.

Há cerca de 40 anos, Muzeleni, o maior polígamo de Moçambique, lobolou as suas “30 Mulheres”. Este ano, na V digressão da Marrabenta, o que acontecerá em cinco províncias do país, três rainhas da canção sul-africana, “Mahotella Queens”, irão testemunhar, na noite de hoje, 27 de Janeiro, “O Lobolo”. Serão loboladas – diz Litho. É como se, de certa forma, os números controlassem a vida dos homens.

O surpreendente no carácter congregador da festa deste ano é que não resulta de obra do acaso. Até porque, como se sabe, “nada pode vir do nada”.

“A música e a cultura em Moçambique não são coisas isoladas uma da outra. Quando, por exemplo, se fala da dança Makwaela vemos bastante teatralidade associada à música. Mas somos obrigados a considerar que aquela manifestação de arte e cultura é dança. Ao passo que, no final, se trata da celebração da vida”, comenta Litho. Para mais adiante, fundamentar: “Se a gente transladar a realidade das nossas famílias para o palco, facilmente podemos descobrir que nela há muito teatro. No seio familiar, quando se dança a Marrabenta, representa-se. Uns trajam calças com “boca-de-sino”, outros fazem acrobacias. Tudo isto é representação”.

Eis a razão que faz com que ao descobrir, ao longo do percurso do Festival Marrabenta, “os marcos deste género musical (no passado) tomamos conhecimento da existência de Lindo Nlhongo”. No entanto, demo-nos conta ainda de que “a sua obra não estava isolada das demais manifestações artísticas. Nlhongo encontrava-se combinado a protagonistas de diferentes formas de arte. A maior parte dos mesmos fez muita intervenção social, traçando, através da sua arte, até certo ponto, o que está a ser a vida em sociedade hoje”, esclarece o director do Festival Marrabenta, Paulo David Sithoe, ou simplesmente Litho.

Atropelar a beleza da cultura

Este ano, o Festival Marrabenta realiza-se sob o mote “Festa da Ritualização”. Haverá uma forte componente de celebração. Afinal muitas glórias foram conquistadas. Mas, infelizmente, conta Litho, tais glórias foram marcadas por algumas perdas irreparáveis. Por isso, é uma festa em que sentimentos de sucesso e nostalgia se associam.

“Causa-nos alguma nostalgia lembrar que personalidades – como Malangatana, Victor Bernado, Tony Django – cujo pensamento e contributo determinaram a realização efectiva do evento nunca mais partilharão nada connosco.

Estas figuras, lendárias na nossa cultura, foram engolidas pela morte”. Estas e outras razões fazem com que Litho avalie os cinco tempos da Festa da Marrabenta desta forma: “Vejo festa, muitas memórias, na medida em que em cada edição alcançamos novas metas. Ao mesmo tempo que algumas perdas irreparáveis se nos colocaram”. Por exemplo, realça, “é provável que não contemos com a presença de David Macuácua – um dos criadores da banda Ghorwane – que se encontra doente”.

Mais importante ainda é que, ao longo dos cinco anos ficou-nos claro – e isso é um facto comprovado – que “na nossa cultura há muita beleza que não deve ser atropelada”, diz Litho.

E no campo das lições e ilações vale a pena reiterar “o entusiasmo, o espírito de ensinamento, a forma didáctica como Malangatana encarou o Festival Marrabenta, ainda a nascer em 2008, como tendo sido (sobretudo para os dias actuais) estimulantes para os jovens que naquela época engendraram a deslumbrante ideia de começar o ano a marrabentar”. Aquela atitude, reconheça-se, resgatou a nossa música, alguns dos seus fazedores, e não tardou muito para se tornar numa tradição, num rito que se consolida em cada ano que passa.

“Recordo-me que o Tony acompanhou a primeira edição. E na segunda – já em 2009 – a gente desafiou-lhe a interpretar o repertório musical (completo) de todos os clássicos da Marrabenta cujos autores já não existiam”, refere Paulo David Sithoe.

O outro aspecto, não menos importante, foi “o entusiasmo de continuidade que Tony possuía. A fé de que nós, os jovens, a par dos artistas da chamada “Velha Geração” podíamos fazer mais, foi essencial para se traçar o rumo que o evento tomou. Ora, sem tencionar tirar mérito aos outros artistas senti, por exemplo, que na II edição as vozes de Tony, de Victor Bernardo, de Kaliza e de Stélio deram melhor visibilidade ao evento”.

Astros a caminho da idade 100

Entre os anciãos do Festival Marrabenta encontram-se Moisés Ribeiro da Conceição Mandlate, de 92 anos de idade, Dilon Djindje, de 85 anos, Xidiminguana e Alberto Mhula, ambos com 76 anos.

Concentremo-nos em Mandlate e Mhula. O primeiro com mais de 80 anos de dedicação à música, ao passo que o segundo possui cerca de 70. Trata-se de duas lendas da canção e da cultura moçambicana. Mas há quem prefira considerá-los “patrimónios da humanidade”. São nossos, são moçambicanos e ser-nos-ão mostrados nos próximos dias.

As suas histórias de vida, algumas das quais por vezes penosas, a sua relação com a canção são, sem dúvida nenhuma, algo didáctico. Cheio de valores morais e de cidadania. Vê-los em palco – sem vergar – é sempre uma mais-valia para o povo. Deviam até servir de cartão-de-visita do Festival Marrabenta.

De referir que, devido à idade avançada, Mandlate está debilitado. Mhula, igualmente. No entanto, o caso deste último foi recrudescido por um acidente por si sofrido em finais de 2010. Daí em diante, o homem passou a movimentar-se com o auxílio de uma cadeira de rodas.

Certa crónica considera que em 1940 Mandlate criou a Banda Manjacazianos, na qual reunia jovens cantores oriundos de Manjacaze – ainda que tenha nascido em Maputo – para musicar. Treze anos depois, em 1953, funda a Orquestra Djambo com a qual criou a famosa “Elisa ghomara saia”, como forma de promover a Marrabenta.

Por outro lado, Mhula assume sem polémica a paternidade do grupo Manjacazianos. Aliás, sabe-se que a referida orquestra foi criada em homenagem própria, em tributo à sua terra natal, Manjacaze, na província de Gaza.

Ao trazer as Mahotella Queens, ao País da Marrabenta, ao movimentar gente com a craveira de Mandlate, Mhula, Xidiminguane, Dilon Djindje pelo país, o director do festival Marrabenta, Paulo David Sithoe, considera que “estamos à busca da internacionalização do evento, da música e dos músicos moçambicanos. Diria até que estamos a globalizar”. Por isso, “espero que estejamos à altura de fazer face aos desafios que nós criámos”, realça.

Matematicamente falando, a maior parte da equipa do Festival Marrabenta – inclusive o seu director, Paulo David Sithoe, não assistiu à obra “As Trinta Mulheres de Muzeleni”. O Mesmo se dá com o autor destas linhas.

Portanto, o Musical Marrabenta “O Lobolo e as 30 Mulheres de Muzeleni” representa o resgate do passado para não somente entender o presente, como também inová-lo. Trata-se de descobrir a imensa beleza contida na nossa cultura que, não devendo ser atropelada, vale a pena valorizá-la.

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