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O que é que o poeta fazia no Parlamento?

O que é que o poeta fazia no Parlamento?

Em Angola, o notável escritor africano, Lopito Feijóo, foi durante 16 anos parlamentar pelo movimento de libertação nacional, o MPLA, o mesmo partido que dirige a nação há cerca de 40 anos. No entanto, ao que tudo indica, a sua ligação ao sistema político não o corrompeu. Ou, pelo menos, a sua poesia revela o contrário. Saiba porquê…

 

Omais elementar dicionário da língua portuguesa considera que a patologia é uma parte da Medicina que estuda as doenças, os seus sintomas e a natureza das modificações que elas provocam no organismo. Por isso, não sei se seria correcto aplicar o termo para classificar as metamorfoses que ? no texto Lex & Cal Doutrina ? as palavras sofrem, ganhando múltiplos significados, como sendo patogénicas.

 

De qualquer modo, porque não sou linguista nem médico, mas um repórter ansioso para transmitir ao estimado leitor a minha impressão em relação à referida obra, assumo o risco de “ofender” os profissionais da Língua e da Saúde pela missão (in)formativa.

Mas antes vale a pena contar que, depois da obra Espólio do escritor brasileiro Rubervam Du Nascimento, Lex & Cal Doutrina é o segundo livro de um escritor estrangeiro ? por coincidência de expressão portuguesa ? a ser retratado no @Verdade pelo autor destas linhas.

A outra curiosidade é que ambos os escritores e/os livros foram destinados ao País da Marrabenta no contexto dos intercâmbios culturais que este, através do Movimento Literário Kuphaluxa, desenvolve com o mundo.

De referir que não encontro muitas diferenças em relação aos dois textos. Ambos sugerem-me uma leitura apetecível e, acima de tudo, exigente. Provavelmente a característica mais evidente ? nas referidas similaridades ? destas composições poéticas é a exigência de concentração que impõem ao leitor. Por isso, resolvi ler o livro de Feijóo às 10.30horas da noite. Este tempo é calmo porque está livre da maior parte das actividades humanas.

Ainda que ditas em relação ao Espólio de Nascimento, as palavras de Izacil Guimarães Ferreira descrevem bem o texto de Feijóo. Trata-se de uma obra “exigente porque requer do leitor um alto grau de concentração, sem a qual se perderia num roldão de imagens…”

No entanto, se a “ausência de pontuação, de conectivos e artigos” são alguns factores apontados por Izacil como que dificultassem a compreensão do Espólio, em Lex & Cal outras virtudes podem ser nomeadas.

Nação condenada

Feijóo preocupou-se em mostrar como a mesma palavra, uma vez decomposta, pode possuir vários significados. Senão leiamos: “São vagos os prazeres/ sonantes dos vermes/ ambí/ ciosos e com/ posição de/ composta…”

No entanto, o peculiar nesta escrita ? não são necessariamente as patologias linguísticas de que falamos mas ? é a denúncia que realiza em relação à realidade social do continente africano. Ou seja, Lopito Feijóo, este poeta que não se deixou engolir pelo sistema de governação do seu país, apesar de fazer parte do mesmo, confidencia-nos que o continente africanos se transformou numa “nação condenada”.

Peremptoriamente contra a corrupção

Na sua última estada em Maputo, Lopito Feijóo reiterou o seu velho discurso sobre a urgência do combate à corrupção em África. Ele parece ser da contra-corrente. Enquanto os demais intervenientes sociais consideram o HIV/SIDA o maior mal dos nossos dias, Feijóo não diz algo diferente. Mas considera que há um problema maior ainda.

É neste sentido que o autor da obra “Me ditando” afirma que a corrupção é uma doença mortal, do século XXI, nos países africanos. Para si, este fenómeno que se arrasta com a perda de valores morais ? solidariedade, fraternidade, amor ao próximo ? pode ser explicado com base no cenário belicista que se instalou nos nossos países logo os anos das independências das colónias portuguesas.

Aliás, no trecho “toda a hábil/ idade morre/ pela boca/ que o anzol vislumbra” é fácil – numa leitura interpretativa – visualizar o consumismo, o egocentrismo, bem como a corrupção que caracteriza as Homens do nosso tempo.

Em consequência disso, Lopito Feijóo não recusa totalmente que o HIV/SIDA pode ser, em certo grau, um mal digno de combate severo. Afinal esta doença, apesar dos avanços da Tecnologia e da Medicina no mundo, em África teima em ceifar vidas humanas.

Como tal, enquanto o combate desenvolvimentista excluir a “free/ sexual/ idade satânica” que nos países mais instáveis ? além de se tornar um negócio comum ? é o único garante do pão de cada dia, nalgumas famílias, o destino de África pode ser incerto.

Na cerimónia da publicação do seu livro, em Maputo, o autor de que estamos a falar admoestou sobre a urgência de ensinar às nossas crianças (?) que a actividade sexual não deve ser confundida com o ténis que as pessoas calçam e descalçam todos os dias”. Enfim, esta é a impressão que tivemos ao lermos alguns textos do Lex & Cal Doutrina. Mais do que isso, o estimado leitor pode explorar no livro.

Uma história comum

Na história da literatura da África portuguesa há muitos aspectos comuns entre os países membros. Por exemplo, quando no ano de 1985 em Moçambique surge a Revista Charrua em Angola criava-se a Aspiração, uma publicação que pertencia à Brigada Jovem de Literatura de Luanda.

Mas antes, no princípio da década de 1980, os escritores angolanos e moçambicanos desenvolviam um intercâmbio cultural vibrante de tal sorte que ? mesmo nas difíceis condições sociopolíticas da época ? era muito frequente a realização de viagens dos escribas de ambos os países entre as suas nações.

Encontros do género estendiam-se nos demais países da referida comunidade. Afinal, tal intercâmbio era dinamizado pela Liga dos Escritores dos Cinco, a LEC, com a finalidade de realizar encontros permanentes, de forma rotativa, nos Estados recém-formados. Em Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau, a LEC era presidida, respectivamente pelos escritores Luandino Vieira, Rui Nogar, Alda Espírito Santo e Vasco Cabral.

Tratava-se de uma dinâmica que tornava possível, não somente. a interacção dos autores como também a troca de experiências, saberes e da produção cultural ? no campo da literatura ? de cada país, uma vez que uma obra de um escritor angolano, por exemplo, podia ser publicada simultaneamente nos cinco países.

Foi nesse contexto que Lopito Feijóo publicou, em primeira mão, a obra No Caminho Doloroso das Coisas (1987) em Cabo Verde. Naquele ano, o país acolheu um encontro da LEC.

Quando a vontade política funciona

No entanto, quando nos recordamos de que os primeiros anos da formação das novas nações ? no contexto da África lusófona ? foram marcados por uma economia deficitária, de tal sorte que em Moçambique, por exemplo, se adoptou o Programa de Reestruturação Económica (PRE), torna-se salutar questionar com que recursos se tornava possível manter tais intercâmbios.

A resposta é simples. Os dirigentes políticos queriam que assim fosse. Havia uma vontade política que superava os obstáculos. Além do mais “os governos dos nossos Estados possuíam regras quase uniformes. O sistema de partido único tinha herdado algumas reminiscências da governação colonial. Nessa altura, ainda não havia a questão do negócio da cultura que, muitas vezes, não diferia de um jogo de futebol. As suas actividades eram praticadas por amor como, essencialmente, se faz arte”, considera o escritor.

Tudo se tornou comercial

A tendência que a acção cultural tomou nos últimos anos ? típica da que ocorre nas indústrias culturais porquanto obedeça à lógica comercial ? arrasta (também) algumas consequências negativas nas sociedades africanas.

É que “tudo ? a cultura, a música, a literatura ? se tornou comercial. Os escritores escrevem porque têm editoras para as quais, numa perspectiva essencialmente mercadológica, irão vender os seus livros. Agora a acção cultural é realizada em função do negócio, ao passo que no passado era desenvolvida de acordo com os interesses patrióticos e da própria arte”.

A realidade dos anos de 1980 estimulava os cidadãos africanos a desenvolver algum interesse pela produção cultural ? ao nível das artes ? na África portuguesa. Existia uma ponte que, 20 anos depois, foi revitalizada pelo Instituto Camões de Portugal através das correntes lusófonas, ou encontros entre escritores da LEC que se congregavam para discutir assuntos referentes ao movimento literário.

Tais realizações tiveram lugar, pela primeira vez, em Lisboa no ano de 1997, alguns anos depois em Maputo e nunca mais aconteceram. Lopito Feijóo suspeita que a aparente inacção se deve a questões políticas. Por isso, “as novas gerações da literatura moçambicana e angolana devem trabalhar no sentido de revitalizá-las”.

@Verdade: Como era realizar e promover a literatura nos anos de 1980? Lopito Feijóo

(LP): Fazer poesia era, acima de tudo, criar e partilhar o produto da nossa imaginação com os demais autores da nossa geração. Nas conversas que travo com os novos autores angolanos, tenho percebido que eles receiam mostrar o seu trabalho aos outros. Penso que eles têm medo da crítica. Trata-se de um comportamento que amputa a aprendizagem.

Em contra-censo a isso, naquela altura, nós escrevíamos e mostrávamos a nossa composição a qualquer pessoa que não precisa de ser um crítico literário. Mas é preciso esclarecer que ler é uma coisa, escrever é outra. A escrita exige muito exercício, é uma actividade sofrida, que deve ser cultivada continuamente.

@Verdade: Quais eram os objectivos da vossa agremiação, em Angola, em 1980?

LP: Nesses anos explorámos as reminiscências de luta de libertação nacional na literatura. Isso propiciou a criação e/ou a efectivação de uma poética que se realizava através de palavras de ordem para apoiar o partido no poder.

É verdade que tal expressão poética possuía alguma artecidade bem como literariedade, mas não reflectia as reais vivências do povo. Por isso eu e outros jovens como, por exemplo, António Panguila, Luís Cangimbo e Frederico Ningue decidimos criar (no seio da brigada) uma corrente chamada OHANDAJI a partir da qual desenvolvemos trabalhos literários que visavam investigar a cultura local para enraizar uma poesia com uma dose acentuada de teorismo falando das coisas da terra, bem como dos aspectos com que o povo se identificava.

Ergam a vossa bandeira

@Verdade: Então queriam substituir poetas como Agostinho Neto?

LP: Na literatura não há insubstituíveis, mas também não se substitui ninguém. Cada escritor, no seu tempo, tem o seu espaço. O essencial é a criatividade autoral. Substituir escritores como Agostinho Neto, António Jacinto, Ângelo Almeida Santos, Mendes de Carvalho ou Wanhangaxito, José Craveirinha, Rui Knofli, Eugénio de Lisboa é praticamente impossível. Eles são insubstituíveis. Conquistaram o seu espaço no seu devido tempo.

É essencial que se crie um novo espaço sem se pretender substituir ninguém. O que vocês jovens poetas devem fazer é criar a vossa literatura de forma original. Os processos são dinâmicos e rejuvenescem. Cada tempo tem o seu contexto e cada contexto possui o seu texto.

Agostinho Neto e José Craveirinha viveram no âmbito do nacionalismo, da luta pela liberdade. Essa realidade moldava o seu pensamento. Eu vivi nos anos da guerra de desestabilização, por isso escrevi As Marcas da Guerra. Isto significa que vocês também devem escrever sobre os vossos tempos.

Meu pão de cada dia

@Verdade: Estamos a falar do poeta como um criador. Descreva-nos o seu processo de criação.

LP: É muito exigente porque tem um princípio e não tem fim. É um processo difícil e complicado, o qual denomino experimentalista e concretista. É concreto porque associa a realidade objectiva ao exercício poético diário. A poesia é o meu pão de cada dia. Da mesma forma que ? todos os dias como pão ? leio e escrevo um texto poético diariamente. É uma doutrina.

Isso implica um exercício experimentalista que, através da língua ou da linguagem, nos leva a um apuramento estético de que resultam textos escritos de manhã, lidos de tarde, rescritos de noite, assim sucessivamente. Cada leitura e releitura implicam reescrita. Um exercício que só termina quando se alcança a insaciedade total. Posso equiparar isso ao momento em que um pássaro recém-nascido sai do ninho para voar. Quando isso acontece, então o poema está pronto para ser mostrado ao leitor.

Mas também costumo dizer que se eu, como autor, faço um trabalho exigente da escrita, que consiste na elaboração e reelaboração, a língua exige que os meus leitores o façam quando lêem os poemas.

Aprender eternamente a escrever

@Verdade: Lopito Feijóo publica três livros no mesmo ano, no entanto não se assume como um escritor consagrado. Quer fundamentar esta posição?

LP: Aprendi que para quem se quer verdadeiramente artista, numa vertente artístico-literária, um dia não existe. Um ano não conta. E 10 livros são mesmo que nada. Agora eu tenho 30 anos de prática. Dez vezes três é igual a 30, valor que divido por dez é igual a três.

Quero dizer que tenho três menos nada. Isso significa que, cada vez que o tempo passa, aprendo e descubro que tenho muito mais percurso a fazer. Em literatura não se pode dizer que já cheguei. Nunca se chega porque não há meta. A única meta é aprender todos os dias a escrever.

Por isso, não me sinto realizado mas satisfeito. Em literatura nunca se deve desafiar o mais velho porque cada escritor tem a sua experiência. “A antiguidade é um posto”. Nunca se deve duvidar da capacidade e da experiência dos que nasceram antes de nós.

Por uma razão muito simples: a minha experiência não é exclusivamente minha. Ela resulta da minha vivência como também da relação que travo com os meus contemporâneos, como também da relação que desenvolvo com a vossa geração. Eu não quero ser compreendido

@Verdade: Como analisa o seu percurso, muito em particular, olhando para as mensagens contidas no livro Lex & Cal Doutrina?

LP: Dizem-me que ao longo dos 33 anos em que realizo e publico textos poéticos cresci. Conheci pessoas do nosso continente, sobretudo as da África negra. Refiro-me a países como Nigéria, Senegal, por exemplo, onde tenho amigos poetas. Partilho experiências com poetas da Europa e da América, onde tenho a possibilidade de editar livros. Lá há muitas editoras que se interessam pela literatura africana.

@Verdade: Acha que a sua poesia é compreendida?

LP: Eu não quero ser compreendido. Há autores que não foram compreendidos no seu tempo, mas que hoje são considerados clássicos. Mesmo nas nossas literaturas, durante muitos anos, José Craveirinha não foi compreendido pelos seus contemporâneos no seu próprio país.

Por exemplo, aprecio a expressão que os meus amigos do Kuphaluxa têm usado. Às vezes, a escrita é como uma lâmina que fere. E, geralmente, o sistema de governação instituído não gosta de tais lâminas.

José Craveirinha escreveu autênticas lâminas que magoavam. Por isso, muitas vezes, a sua criação era inconveniente na cena sociopolítica em que viveu. No entanto, enalteceram a sua arte, tornando-lhe uma referência incontornável. O cerne da questão reside no facto de que não nos devemos assumir como escritores dum determinado sistema.

Eu mesmo tenho uma experiência parlamentar. Fiquei 16 anos como deputado da Assembleia Nacional da Angola, e agora sou reformado. Tenho uma vida razoavelmente realizada. Recebo a minha mísera reforma e vivo da poesia. Mas não vivo graças ao sistema nem ao Estado angolano.

Enquanto eles faziam blá-blá eu produzia poesia

Apesar da sua notável experiência na literatura, Lopito Feijóo teima em considerar-se um aprendiz, para noutro desenvolvimento revela um aspecto peculiar referente à sua vida como parlamentar.

“Eu escrevi muita poesia no parlamento. Enquanto os políticos faziam o seu blá, blá, blá ? sobretudo quando a discussão se mostrava improdutiva ? eu realizava os meus apontamentos e versos poéticos”.

Feijó não receia nada em relação ao seu pronunciamento referente à Assembleia Nacional de Angola. Por isso reitera que “tornei-me parlamentar graças à minha representatividade como poeta, sem a qual não teria estado lá”. Ademais não fui seleccionado devido a pendores políticos, mas por causa da minha identidade de artista da palavra mas, acima de tudo, por ser entendido pela juventude”.

Portanto “se, nos dias que correm, sou um deputado reformado e recebo algum valor monetário como aposentado, o mérito é da literatura. Se eu não fosse poeta não teria sido deputado, da mesma forma que se não me tivesse tornado parlamentar não teria a reforma que me sustenta”.

Feijó lamenta a fraca atenção que, actualmente, os Governos prestam à cultura. “É como se a cultura fosse enteada nos nossos Estados, o que não devia acontecer. O seu desenvolvimento deve ser promovido cabalmente. Penso que se deve investir mais nesse aspecto porque envolve a questão da dignidade, dos valores morais assim como da sensibilidade humana”.

É por essa razão que preferiu terminar a entrevista considerando que se “deve investir bastante neste sector porque actualmente ? contrariamente ao se pensava no passado ? os países podem arrecadar muitas divisas derivadas das artes.

Ora, isso seria muito bom porque, uma vez que a inspiração para o desenvolvimento da actividade artística provém do povo, os seus benefícios seriam aplicados no melhoramento da condição humana deste, assim como da classe dos criadores”.

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