Em bofetada que ouviu-se em todo o planeta, a agência estatal chinesa de avaliação de créditos acaba de reduzir a avaliação do crédito dos EUA e questionou os EUA como economia líder do mundo.
Num movimento sem precedentes, a China denunciou “a deterioração da capacidade de pagamento” de Washington e previu que a emissão de bilhões em papel-moeda (operação chamada de “flexibilização quantitativa” [ing. quantitative easing] no jargão financeiro) resultará “fundamentalmente em redução da solvência nacional”.
Ah, como os tempos mudaram! Quando eu era menino, o meu pai, financeiro em New York, chamava os títulos duvidosos de “papel chinês”. Seis décadas depois, é a vez da China gozar dos instrumentos financeiros norte-americanos. A China detém hoje a maior fatia da dívida externa dos EUA.
As monarquias sempre sofreram muito para pagar pelas suas guerras e conquistas. Os impérios espanhol, francês, holandês e britânico ruíram sob o peso financeiro das guerra e das colônias gigantes. Os EUA hoje padecem da mesma doença imperial.
Desde o Egito antigo, o recurso ao qual tradicionalmente recorrem os impérios com problemas de caixa tem sido reduzir a proporção de ouro na cunhagem das moedas, prática conhecida como “clipping”.
Fast forward até Washington, 2010. Hoje, fala-se em “flexibilização quantitativa” [ing. “quantitative easing” (QE2)], mas é ainda o mesmo truque tão prestigiado pelos governantes de antigamente.
Washington inundará os mercados financeiros com $600 bilhões de dólares fake, na esperança de que essa maré de dinheiro de “Monopólio”, o jogo, consiga arrancar os EUA da recessão. É a segunda rodada de “flexibilização quantitativa”, chamada hoje de “QE2”. E nada tem a ver com transatlântico “Queen Elizabeth 2a”.
Os EUA exportam inflação para o mundo inteiro, para reduzir sua gigantesca dívida, pagando os credores com dólares desvalorizados.
Todo o mundo está furioso com Washington, como viu-se claramente na reunião do G-20, na semana passada na Coreia do Sul e em Yokohama, Japão.
A União Europeia, o Japão, China, Brasil e Rússia uniramse na oposição à segunda “flexibilização quantitativa” de Washington, vendo nela uma ameaça à estabilidade financeira e ao comércio global. Também muito significativamente, reagiram contra a tentativa, pelos EUA, de culpar a moeda chinesa desvalorizada, pela instabilidade atual. Não se chegou a nenhum acordo na candente questão do câmbio.
Washington acusou a China de manipular sua moeda para mantê-la subvalorizada. Alemanha e Brasil, para grande embaraço dos EUA, acusaram os EUA de também manipular a própria moeda – o que é plenamente verdade.
O dólar depreciado faz crescer as exportações norte-americanas e prejudica as nações que exportam para os EUA. Os economistas chamam isso de “matar de fome o vizinho” – prática comercial destrutiva e predatória que teve papel importante na depressão mundial dos anos 1930.
A onda de dinheiro fake de Washington está a provocar a erosão no valor do dólar, principal moeda de troca mundial. Nos dois últimos meses, o dólar norte-americano caiu mais de 6% em relação às principais moedas. Investidores assustados estão a correr para o ouro, que já valorizou 17% em 60 dias.
O governo Obama, que acaba de levar “uma grande tareia” [ing. “shellacked”, palavra que Obama usou em sua primeira fala depois das eleições (NT)] dos eleitores nas eleições de meio de mandato, e precisa desesperadamente reduzir o desemprego, aposta que mais terapia de choque trará a economia de volta à vida. Mas a dívida interna, gigantesca, já levou ao colapso financeiro de 2008, nos EUA.
A dívida interna dos EUA atinge a cifra estratosférica de 14 trilhões de dólares. Ninguém trata vítima de envenenamento com mais veneno. É quimera imaginar que conquistaremos a prosperidade gastando dinheiro emprestado.
Mas políticos em pânico estão dispostos a tentar qualquer remédio econômico à base de mais veneno de cobra, para salvar a própria pele. Antes de 2007, os EUA viveram à larga, crendo em créditos inexistentes. Esse tempo acabou, mas ninguém se atreveu, até agora, a contar aos eleitores.
Além de desestabilizar o câmbio e o comércio, o maremoto de moeda norte-americana jorra sobre os mercados emergentes, onde os investidores norteamericanos vão em busca de melhores taxas de juro que os miseráveis 0,03% que encontram em casa.
Nos anos 1980, frágeis economias asiáticas foram devastadas, quando ondas de investimento norte-americano avançaram sobre elas e rapidamente saíram de lá. Esse processo volta a acontecer agora, devastando a moeda de outros países, cujas exportações perdem competitividade. Barreiras já se erguem contra esse tipo de investimento predatório em todo o mundo, da China ao Brasil.
O presidente Barack Obama recebeu herança muito maldita do governo Bush. Apesar disso, a resposta que dá hoje nada fica a dever aos desmando bushianos: o projeto econômico de Obama ameaça hoje toda a ordem econômica mundial. A moeda é símbolo nacional mais potente que a bandeira.
De fato, é bem possível que os fóruns econômicos da semana passa na Coreia do Sul e no Japão tenham sido o começo do fim da era do dólar norteamericano, que comandou as finanças e o comércio planetário desde 1945. A fonte primária do poder dos EUA é a economia e a força financeira. O dinheiro tem mais poder que aviões bombardeiros e divisões aerotransportadas.
O dólar continua rei, mas a era de sua supremacia internacional parece estar a terminar. À medida que o dólar enfraquece, enfraquece o poder dos EUA no mundo. A culpa por tudo isso é, integralmente, dos políticos norte-americanos e dos oligarcas de Wall Street.
Na semana passada, Washington foi varrida por rara onda de bom-senso. O painel presidencial bipartidário sobre redução da dívida pública propôs corte de $4 trilhões nos gastos federais.
No alvo dos cortes propostos, todas as vacas sagradas políticas. O corte proposto na carne da mais sagrada delas – o orçamento militar – é da ordem de $700 bilhões. Um terço das bases militares dos EUA pelo mundo terão de ser fechadas.
E terá de haver cortes na seguridade social e nos subsídios para hipotecas; aumento na idade mínima para aposentadorias; e congelamento total de vários dos projetos locais dos quais muitos políticos fazem meio de vida. Além de previsível aumento de impostos.
O ranger de dentes já começou. Infelizmente, cortes de gastos drásticos e impopulares são altamente improváveis, sobretudo num Congresso no qual Republicanos e Democratas estarão em eterno empate. Os EUA precisariam de um ditador econômico, para conseguir implementar todo o Plano de salvação proposto pelo Painel.
A China já tem o seu ditador econômico – por ironia, é o Partido Comunista. Os EUA, mortalmente viciados em guerras e dívidas, só têm paralisia política e fiscal.