Neste país cheio de abutres, vândalos e incompetentes, ninguém tolera as minhas competências…
Uma chamada de curta duração é emitida no meu celular. Cria-se a impressão de um telefonema perdido, quando, na verdade, se trata de um beep. Retorno a chamada. Uma voz meiga, dócil, estridente, de coloração escarlate – ouve-se do outro lado. É apaixonante. Encanta o ouvido.
A partir daquele dia, a minha audição ganhou (outro) sentido. As minhas orelhas já não podiam ser conotadas com antenas parabólicas – como, na sua poesia de escárnio e maldizer, os meus amigos da escola primária o faziam – porque deviam proteger os meus tímpanos, estes felizes receptáculos de todas as sonoridades da nação.
Em reconhecimento da sua simpatia e meiguice, elogiei a voz. Mas, ao que tudo indicava, ela, que nunca antes tinha ouvido uma voz ímpar, sensual, sábia, competente, como a minha, jurou fazer de tudo para não perdê-la. As razões não eram diminutas: a minha voz traduzia a existência de uma pessoa absolutamente competente – tudo o que ela queria –, o que, modesta à parte, tenho de assumir como verdade. Afinal, o meu fazer, que denuncia habilidades raras, comprova isso.
Revelou-me que pertencia a uma família pachola e modesta. Os seus pais haviam-se separado quando ela, a voz, tinha poucos anos. Tanto que em resultado disso, teve de refugiar-se na casa da sua tia, uma mulher excêntrica, a quem considera mãe. O mesmo acontecia comigo.
A diferença, talvez, resida no facto de que parte da minha idade foi vivida com a minha mãe e outra ao lado do meu pai. Mas eu também, como qualquer vítima do divórcio prematuro dos pais, conheço os temperamentos do binómio enteado-madrasta e enteado-padrasto.
Aquela voz, que me encantava continuamente, conhecia o sentido da vida. Sofrera bastante, sendo por essa razão que – mesmo que não fosse comigo – eu desejava-lhe que fosse eternamente feliz. Declamei-lhe “As mãos da nossa dor”.
Meu amor,
As nossas mãos talentosas
Foram em outra vida,
A alegria da nossa vida
O anelar,
Símbolo de felicidade do nosso lar,
No ofício da paz, alegria e felicidade
Mas as tuas mãos, meu amor
As tuas mãos ficaram nervosas,
Candidataram-se à violência
E serviram à tua demência
Ao meu rosto esbelto,
De beleza exótica e rara,
Brindaram bofetadas e pancadas
Pariram guerras, tristezas e infelicidades,
Para a alegria do meu clamor!
E disse-lhe que se, efectivamente, a sua voz fosse a minha – e o sentido inverso fosse válido – então, aquele poema, diferente das nossas vozes, não fazia sentido. Não me compreendeu. Simplesmente, disse que me amava e que queria esposar-me. Jurou!
No entanto, quando descobriu que a suprema competência que aquela voz indiciava, também, se fazia presente na “horripilância” da minha paisagem facial – ela arrependeu-se. Da minha voz nunca mais quis saber. Agora vive resignada, com sentimentos de culpa pelo amor que nutre por mim.
Desde então em diante, tem sido assim. Neste país cheio de abutres, vândalos e incompetentes, ninguém tolera as minhas competências. Quantas vozes, como a minha, estão condenadas?