Embora os homens costumem ferir a minha reputação e eu saiba muito bem quanto o meu nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos, orgulho-me de vos dizer que esta Loucura, sim, esta Loucura que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e os mortais.
Erasmo de Rotterdam
Em Kingston (capital da Jamaica) – no tempo de Michael Manley (falecido em 1997) – o povo enfureceu-se, sublevou-se, e destruiu a estátua de Bob Marley, que acabava de ser inaugurada. Eles achavam que a imagem do seu ídolo estava destorcida e que o arquitecto a quem tinha sido incumbida a missão de eternizar o “pequeno deus”, não mais devia ser chamado.
Recordei-me desta história de grandeza de um povo que vai seguir o seu ídolo até às últimas consequências, quando, no último domingo, a caminho do “Scala” onde decorria o “Dança dos Artistas”, vi um demente, completamente nu, a dançar diante da estátua de Samora Machel, localizada na baixa da cidade de Maputo, em frente à entrada principal do Jardim Tunduru.
O homem dançava uma dança estranha e, todos aqueles que o viam, paravam para ver melhor. As mulheres, que olhavam para o órgão sexual do personagem – que abanava ora para cima, ora para os lados – chegavam mais perto para admirar o espectáculo, e riam-se com as mãos a taparem falsamente o rosto.
Eu também cheguei perto na pesquisa dos detalhes. Era fim de tarde e a baixa da cidade de Maputo está aparentemente despovoada. Não faz nem frio nem calor. Os fotógrafos ambulantes que costumam estar naquelas paragens não estão nos seus postos.
Na fachada do “Gil Vicente” não está ninguém, nem nada, senão os cartazes que nos indicam as caras de alguns dos nossos respeitáveis músicos. Não há carros na estrada, que bom! O demente está a dançar. Dançar a valer! Uma dança estranha que nunca vi. Dança diante da estátua de Samora Machel, que tem o dedo indicador direito em riste.
O homem dança que dança e veio-me à memória o dia em que um corvo, poisado na pala do boné do ex-guerrilheiro, mandou uma “caganita” e bateu as asas, sem saber que aqueles excrementos – mesmo sendo inofensivos – estavam sendo depositados na cabeça de um grande personagem, que representa um povo inteiro. Muitos apressaram-se a afirmar que o homem que dança na “cara” de Samora Machel era um demente. E eu também já tinha chegado a essa conclusão.
Mas, se aquele homem era um demente, então tinha algo supremo, algo estabelecido para além das nossas percepções de humanos, que guiava os seus movimentos. Parecia dançar atento a um som que nós não vamos ouvir. Os seus movimentos eram sincronizados.
Era fiel ao espaço que ocupava nas suas movimentações, nem mais, nem menos um centímetro. As mãos, quando baixavam, iam até ao mesmo nível de todos os abaixamentos que fazia. Quando eram erguidos, iam para a mesma fasquia de todos os levantamentos. O balanço do seu órgão sexual, também obedecia à mesma cadência: duas vezes para a direita, duas vezes para a esquerda, duas vezes para cima, duas vezes para baixo. Nunca tinha visto uma dança igual, ainda por cima protagonizada por um homem – de acordo com a aclamação unânime – demente.
Um demente que agora nos vai mostrar que a sua demência é de uma loucura superior à nossa condição de simples terrenos. Parou de dançar. Dirigiu-se ao pedestal onde se ergue a estátua de Samora.
Olhou para nós com desdém e disse: “Vocês acham que esta estátua tem a ver com o homem que sempre adorastes e seguistes durante onze anos? Seus pobres! Seus desgraçados!”.