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O açúcar maldito

O açúcar maldito

Numa manhã fria de Abril, um homem com terra até a altura dos joelhos remove espigas de caniço que ganharam corpo numa pequena parcela dos 10 hectares de terra que – deste 78 – pertencem a 92 famílias. Ao seu redor, emerge um dique, ervas daninhas e mais camponeses a revolver a terra compõem o cenário dos princípios de manhã em Pateque. Aquele ponto de sobrevivência domina a vista bem ao lado da plantação de cana-de-açúcar mais amarga daquela bairro. No seu esforço quase sobrehumano – e aparentemente inútil – ele encarna a luta pela sobrevivência naquele espaço singular. Foram dois anos – para 92 agregados familiares – sem poderem tocar no solo que alimentou os seus antepassados. Um cidadão nacional de origem chinesa decidiu juntar aos seus 34 hectares os 10 correspondentes aos camponeses daquele ponto da Manhiça. Se a privação das 92 famílias tivesse comparação, nesses 24 meses, a imagem mais próxima seria a de uma tentativa de sobrevivência no deserto.

Num pedaço de terra de 30×15 metros, lamacento, com as folhas de cenoura a rebentarem enquanto o tubérculo ganha corpo no ventre do solo, Mariana luta contra o atraso revolvendo a terra. Capina todos os dias para abreviar o sofrimento de não ter tirado nada do solo nos 24 meses passados. Mede o seu tempo em sementes, e já vai no quarto plástico. Deve ser o último. Mariana Arano Manhique tem 65 anos de idade, quase 66, sempre com o sol a incendiar-lhe a pele e a franzir-lhe as rugas que ela disfarça como pode.

Há, diga-se, calculada a média de produção anual, um prejuízo de pouco mais de 240 mil meticais. Os olhos pretos não se prendem a quem para ela olha. Começam por ser duros, como a voz. Mas o ar de dureza desvanece mal solta o verbo. Afinal precisa de contar uma história passada em Paquete, feita de falsificações de DUAT’s, violência, agressões e muita fome. Mariana fala dela e do seu agregado, mas o relato é, em quase tudo, semelhante aos das restantes 91 famílias que passaram maus bocados por causa de um cidadão de nome Judas Ló Fo Chin.

“Houve muito sangue. Tivemos de agredir a Polícia aqui para proteger as nossas terras. Outros foram presos, mas já estão soltos”. A explicação faz jus ao problema que levou dois anos até atingir o seu desfecho. A violência foi um recurso de última linha, quando aos camponeses só restava a esperança de que a força e a abnegação fossem capazes de demover o cidadão que lhes pretendia, de uma sentada, tirar os últimos 10 hectares de terra que lhes sobravam. São, em grande medida, analfabetos, mas carregam um sentido de cidadania muito elevado.

Todos levantaram as enxadas e fincaram pé diante dos agentes da lei e ordem vindos, pasme-se, de Marracuene para conterem os ânimos de uma população numa circunscrição do distrito da Manhiça. Agora, quando olha para o verde das canas-de-açúcar, nos 34 hectares que os seus progenitores e outros camponeses cederam aos pais de Judas sente asco. Sempre que volta os olhos para aquela mar verde cospe com desprezo.

Não é para menos, pois os filhos que nunca conheceram dificuldades na aquisiçãode material escolar tiveram de contentar-se com a mesma muda de uniforme estudantil nestes dois anos. O asco de Mariamo repete-se de camponês para camponês. Afinal o espectro da fome para 92 agregados familiares chegou por obra e graça de Judas Ló Fo Chin. “Tudo por causa do maldito açúcar para a Maragra”, desabafa João Xerinda para quem a cana já significa o produto final. “O pai trabalhou a terra sem problemas e talvez esse tenha sido o maior erro dos mais velhos. Não devia ter cedido a terra”. Ernesto, de 43 anos de idade, torna-se mais específico.

“Como é que um miúdo que tinha cinco anos quando os nossos pais cederam, em 1980, o espaço ao progenitor dele tem coragem de reclamar estas terras? Ele nem tem ideia de quantas pessoas têm livros, uniforme, comida e roupa lavada com o fruto deste solo”. “Sou viúva e tenho sete filhos por criar, este solo é o meu marido e o meu emprego, sem ele passo fome como passei nestes dois anos por culpa de uma pessoa sem alma”, explica Mariana que é também presidente da Associação dos Camponeses Bloco 04, há sete anos.

Os emigrantes

No quarteirão 4, no Bairro Mateque, são quatro horas quando João Ernesto, de 45 anos de idade, chefe de um agregado familiar de sete pessoas, sai de casa andrajosamente vestido. Àquela hora o bairro é apenas seu, não há lugar para vergonhas. Vai ao rio. Às seis, regressa com uma cesta de peixe. É o seu biscate diário, a “safa” que lhe engordou o rendimento mensal inferior a dois mil meticais nos dois anos que a providência cautelar lhe impediu de trabalhar na sua terra.

João Ernesto é rebento de uma época em que a cabeça dos jovens era inundada pelo sonho de rumar às minas da África do Sul, todavia, a aventura da emigração nunca lhe rimou nos ouvidos. Lá para longe, só partiu duas vezes. Foi até Nelspruit, com uma muda de roupa, para trabalhar nas “farms”: “Com essas economias criei sete filhos. Dois Deus já mos levou.” João vive literalmente do que a água dá. As madrugadas são passadas, porque é permitido produzir hortícolas, a tentar tirar a maior quantidade possível de peixe do rio.

Não ganha muito, mas num dia bom conseguia levar para casa 700 meticais. Apesar de o Tribunal Judicial da Manhiça ter levantado a providência cautelar, João Ernesto não se sente com forças para trabalhar a terra. Os filhos maiores de idade “saltaram” a fronteira para tentarem a sorte do outro lado e isso significa menos braços. “Já mandaram notícias. Encontraram emprego nas ‘farms’e os dois que cá ficaram ainda são menores”. Embora a pesca dê lucro sem hora marcada, ainda representa a única hipótese de dinheiro certo.

“No passado conseguíamos poupar algum dinheiro, mas agora fazemos poupança para chegar para tudo”, atesta João Ernesto. “Quando os meus filhos estavam cá conseguíamos fazer três mil meticais por dia com a venda dos nossos produtos. Não éramos ricos, mas nunca passámos fome. Hoje comemos o que calha”, revela.

O que produziam

Nenhum camponês planta apenas um tipo de produto, mas um rol deles. Cada um na sua respectiva época. “A campanha de mandioca dura oito meses, de batata-doce seis e a de cenoura três meses”, explica Maximiano Samuel Mucavele, de 54 anos de idade. Efectivamente, durante o período de campanha, este camponês ganhava 1000 meticais por semana com a venda dos seus produtos. Ou seja, 4000 meticais por mês. Portanto, 12 mil da produção de cenoura; 24 mil da batata-doce e 32 mil da mandioca.

Resulta daí que em dois anos a sua família ficou privada de uma receita de 136000 meticais. Com a possibilidade de plantar muito abaixo do desejável e o alimento reduzido apenas ao que o rio oferece, Mucavale sabia que não havia margem para erro, sobretudo quando o Tribunal Judicial da Manhiça decretou uma providência cautelar que impedia os camponeses de trabalharem a terra. Com efeito, tal não sucedeu sem, antes, Eleanor Tivane, João Matine, Helena Manhiça e VukelaKona terem sido encarcerados uma semana na esquadra da Maragra por “perturbação da ordem pública”.

“Não sei porque gente honesta foi detida, tratada como criminosa e o usurpador de terras ficou impune. Não há justiça neste país. Aliás, ela só serve para quem tem dinheiro. Fomos maltratados com a nossa própria terra,” lamentou Mariana Manhique que julga imperdoável o acto praticado por Judas, apesar de o caso ter tido um desfecho desfavorável a este.

Guarda mágoa

Mariana Manhique recordou que na sua horta foram destruídas plantações como cenoura, batata-doce, couve e algumas mangueiras. Nos dois anos que ficou privada de usar as suas terras comeu “o pão que o diabo amassou”. Vivia de biscates que consistiam em sachar as terras de outros camponeses para ter o que comer.

Contudo, “o que ganhava mal chegava para alimentar a minha família. Foram dois anos de um autêntico tormento porque, para além de não ter nada a fazer, tenho dois filhos que ainda estudam.” Para Maximiano Samuel Mucavele, de 54 anos de idade e pai de seis filhos, os danos causados por Judas na economia familiar são incalculáveis. Maximiano considera que foi marginalizado e, por isso, viveu dois anos sem rumo, durante os quais não sabia, sempre que o sol despontasse, onde arranjar dinheiro para alimentar os seus, muito menos 40 meticais para transporte dos filhos que vão à escola.

“Há vezes que pescava no rio Incomáti e disfarçava a carência,” disse. “Espero que se faça justiça, as pessoas com poder financeiro não podem acordar e, sem mais nem menos, usurparem terras de gente honesta dedicada ao trabalho e daí não resultar qualquer consequência,” comentou Maximiano Mucavele que explora as terras do bairro Pateque Manhice desde 1974. Marcos Carlos Mathe, de 35 anos de idade, responsável por cinco filhos, trabalha nas terras que tinham sido usurpadas desde que se tem como gente. Não sabe quando a família Mathe começou a explorar as hortas do bloco 04, mas não ignora que foi através das mesmas que ele foi sustentado e educado.

“Estas terras foram o meu primeiro e único emprego. Virei vagabundo durante o tempo em que não podia trabalhar nelas, só eu e a minha esposa sabemos o que passámos nesses dois anos,” precisou Marcos. Para o jovem Marcos Mathe, o cidadão que tentou relegar cerca de 92 agregados familiares para amargura devia responder em sede própria. Diz não saber taxativamente quanto ganhava por mês mas assegura que não passava necessidades.

Na campanha agrícola colhia sempre produtos para comercializar. Muitas vezes alugava uma camioneta e ia vender na cidade e assim a vida fluía. “Agora tentamos recuperar o tempo perdido, a nossa vida desagua nestas terras, nada pode compensar o tempo sem elas, mas eu já estou a trabalhar afincadamente para colher o mais breve possível,” disse Marcos Mathe que interrompeu a sua jornada laboral para conversar com o @ Verdade.

O nosso jornal contactou o cidadão acusado pelos camponeses e este não mostrou disponibilidade para tecer quaisquer considerações em torno do caso porque, disse, o caso ainda segue os seus trâmites legais. “Falei com a minha família e concluímos que não convém falarmos deste assunto neste momento porque o processo está nas mãos das entidades competentes. Quando tudo ficar resolvido poderemos trocar impressões,” disse o visado num breve contacto telefónico. Enquanto Judas ainda crê num outro desfecho para o caso, os camponeses trabalham a terra. Assim como o homem que tem as pernas enterradas na terra até a altura dos joelhos, mais um retrato do esforço inacreditável para suprir, com os braços, o sabor aziago de uma plantação de cana-de- -açúcar que jamais voltará a ser doce em Mateque.

A origem de tudo

Em 74 um cidadão português, de nome José Simão, deixou as terras nas quais trabalhava, em Moçambique, com os camponeses locais e rumou para a sua terra natal. Os residentes de Paquete criaram cooperativas agrícolas. Volvidos 21 anos, estes decidiram abandonar o sistema de produção cooperativa e iniciaram, até 99, plantações familiares. Um ano depois fundaram a Associação dos Camponeses de Honwana Pateque Bloco 4. Contudo, só transcorridos cinco anos é que o associativismo teve reconhecimento legal.

Quando a década de 80 corria lenta um cidadão chinês, de nome Lofo Chin aproximou-se dos camponeses e solicitou um espaço. As famílias recusaram por temer que a terra lhes fosse retirada. Porém, a estrutura local intercedeu e os populares cederam uma parte das terras agrícolas. Em 1990 Lofo Chin perdeu a vida e o espaço ficou abandonado. Em 2011 surgiu Judas Ló Fo Chin com um topógrafo nas terras da associação e deslocou os marcos que datavam do tempo colonial.

Quando questionado pelas comunidades sobre as suas intenções, afirmou que estas podiam ficar descansadas. Porém, em Setembro de 2012, ao reabilitar o dique quadrangular que ia até as terras da sua família, contíguas aos 10 hectares dos 92 agregados familiares de Mateque, destruiu os produtos dos camponeses da associação. Posteriormente, uma queixa foi remetida ao director dos Serviços de Actividades Económicas da Manhiça da qual não se obteve, até hoje, qualquer resposta. No mesmo período efectivos das forças da lei e ordem, afectas à esquadra de Marracuene, passaram a guarnecer as terras que Judas reclamava como sua propriedade.

A 17 de Novembro de 2012, acompanhado por um forte contingente da PRM, voltou a destruir os produtos diante da impotência dos camponeses. Dois dias depois, os membros da associação dirigiram-se ao Comando da Polícia na Manhiça. Qual não foi o espanto dos populares quando souberam que os agentes que acompanhavam Judas não pertenciam àquela jurisdição.

A descrença só foi desfeita quando foram notificados para prestar declarações em Marracuene. Fazendo-se acompanhar pelo chefe da localidade da sede da Maluana e um técnico, Sérgio Samuge, director dos Serviços de Actividades Económicas, foi ao local do litígio a 20 de Novembro e deu ordens para os homens que operam os tractores de Judas paralisarem o seu trabalho e marcou uma reunião com a população para o dia seguinte nas primeiras horas. Todavia, o referido encontro foi adiado alegadamente porque coincidia com a data em que é celebrado o Dia Mundial da Pesca.

A solução encontrada foi arrastar o encontro para o dia seguinte. Contudo, tal reunião não se realizou porque Sérgio Samuge não se fez ao local. Um grupo de camponeses dirigiu-se ao Comando Provincial da Manhiça no dia 23 de Novembro em virtude da presença de alguns agentes policiais estranhos à sua zona de jurisdição. Prontamente, o responsável por aquela unidade da Polícia contactou telefonicamente o chefe das operações do comando de Marracuene.

Questionado sobre a presença de homens afectos àquela circunscrição numa zona da competência de agentes da lei e ordem da Manhiça, este afirmou que não estava a par do assunto. Mais tarde, Judas trouxe máquinas para prepararem a terra e voltou a encontrar forte resistência da população. Ele recorreu, desta feita, aos polícias da Manhiça que detiveram 10 pessoas.

Uma semana depois foram soltas sem que nenhum processo tivesse sido aberto. Com efeito, Sérgio Samuge, do DSAE, acompanhado do chefe das operações do comando da Manhiça, no dia 14 de Fevereiro de 2013, reuniu a população para informar que as terras em disputa deveriam ser entregues a Judas e que seria atribuído outro espaço aos 92 agregados familiares. Os camponeses recusaram e o cidadão Judas intentou uma acção judicial a qual teve um despacho desfavorável a si.

Despacho do Tribunal

De acordo com o despacho do Tribunal do Distrito da Manhiça, processo n° 33/13/S, o qual se baseou no artigo 1282° do Código Civil, cuja epígrafe é a caducidade constatou-se o seguinte: “A acção de manutenção, bem como as de restituição de posse caducam se não forem intentadas dentro do ano subsequente ao facto da turbação ou do esbulho, ou ao conhecimento dele quando tenha sido praticado a ocultas.”

Assim, o juiz de causa, Josué Matsinhe, decidiu favoravelmente em relação aos camponeses porque “ouvidos os requeridos e suas testemunhas, estas foram unânimes em afirmar que os requeridos ocupam aquelas terras há mais de 30 anos, de boa-fé, com conhecimento e anuência dos pais do requerente Judas e que conheceram este quando tinha apenas cinco anos e eles trabalhavam aquelas terras quando o conheceram.

Disseram ainda que não é sobre todos os 48,8 hectares que há conflito, mas apenas sobre 10 hectares que os requeridos, constituídos em associação de camponeses, estão a explorar desde 1974 e que eles é que cederam as terras aos pais do requerente em 1980, tendo reservado para si aqueles 10 hectares, porém, aquando da legalização do terreno, os pais do requerente, agindo de má-fé, incluíram aqueles 10 hectares da associação, daí que ostentem título que refere serem detentores do direito de uso e aproveitamento sobre 48,8 hectares, quando materialmente são 38,8, uma vez que aqueles 10 hectares que o requerente reclama como seus de direito, materialmente nunca foram dos seus pais, pois sempre estiveram nas mãos dos requeridos há mais de trinta anos e com pleno conhecimento do requerente.”

E concluiu-se que “nos termos e por força do artigo 1282° C.C., caducou o direito à acção por parte do requerente, uma vez que teve conhecimento do alegado esbulho e dos esbulhadores, há mais de 30 anos e só passado esse tempo todo veio requerer uma providência cautelar não especificada para, vejam só, intimar os requeridos a “absterem- se da sua conduta (invasão da machamba) que lesa o direito do requerente”.

“Será que ao longo dos últimos trinta anos em que teve conhecimento de tal invasão o seu direito não era lesado?”, questiona o juiz da causa que refere, no seu despacho, que “sem necessidade de nova audição do requerente Judas Ló Fo Chin e/ou testemunhas, não procede a pretensão do requerente e em consequência denego a providência por caducidade do direito à acção (1282° C.C.).”

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