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Pandza: No dia dos namorados

A tarde curvava-se cedendo ao peso da noite. O dia mais piegas do calendário esmoreceu cedo. Ao contrário de outros dias dos namorados, este não teve tanto mel. Os amantes não desfilaram com açúcar nos olhos e doçura nos gestos. Àquela hora, os restaurantes desistiam às moscas.

 

Nas montras os manequins desanimados ainda vestiam os irritantes trajes vermelhos e brancos. Os floristas de rua já nem procuravam compradores, queixando-se da falta de negócio. Já não haveria amantes, ou a crise que arrasa as economias atingira os bolsos e os sentimentos das pessoas? Uma coisa era certa: com as medidas de austeridade retirou-se o amor das listas de prioridades.

 

São Valentim fechou a loja mais cedo do que nos dias dos namorados de outros anos. Depois de contabilizar o prejuízo ameaçou despedir Cupido, o principal culpado pelo desastre. Cupido deveria andar pelas ruas a espalhar amor, sentimento responsável por levar clientes à sua loja de presentes.

Eu, de coração cicatrizado e sentimentos reformados, alheio ao espírito cor-de- rosa do dia, ia para casa naquela sem pressa do fim de tarde. Foi quando me surgiu Cupido, também se arrastando a passo de final de expediente. Era um cupido negro, de calções e carapinha.

Desceu do chapa, pagou e recebeu os trocos sem olhar. Dobrou a esquina e entrou para os labirintos do subúrbio, a caminho de casa. Quando me viu, adivinhando as solidões que me entranhavam, parou, barrando-me a pasagem, como se pára à porta de um bar com uma bacia de amendoins, e tentou uma derradeira venda:

– Estou a vender amor – abriu a sacola, retirou de lá um arco, uma aljava, uma flecha e exibiu-me. Dispensei, abanando a cabeça. Quis contorná-lo e seguir o meu caminho, mas voltou a barrar-me.

– Bom preço – insistiu armando delicadamente a flecha no arco.

– Não, obrigado – consegui passagem entre ele e o limite da rua estreita, e caminhei embora. – Já queimei demais com o fogo do amor.

– Mas tio, o amor não arde, muito menos queima – seguiu-me insistente.

– Miúdo, você não sabe que o amor é um fogo que arde sem se ver?

– Isso é poesia tio. O amor é uma coisa assim como esta, que nos txopa no coração e fere os sentimentos – argumentou virando-me o arco e flecha, pronto a txopar-me. A ponta afiada daquela coisa luziu. Assim apontada para mim, não tive dúvidas de que o amor é uma coisa muito bélica, e eu estava em paz com as minhas solidões.

– Vira isso. Deve doer ser espetado com isso.

– O amor, se não doer, não é bom. Quanto mais doer, melhor.

– Não, obrigado, eu já não tenho idade para amar – quase o atropelei.

– Não há idade para amar, tio.

– Não, não, obrigado.

– Estes, arco e flecha, são para um amor convencional, tenho outros mais tradicionais, e mais baratos – argumentou rebuscando a sacola. – Este, por exemplo, é um amor malandro, discreto – mostrava uma fisga, ensaiando o elástico – um amor debaixo das árvores ou atrás de moitas, como se caçasse passarinhos.

Eu caminhava e já nem lhe respondia. Cupido seguia-me promovendo os seus produtos. Mostrou-me uma azagaia:

– Este é para um amor poderoso, ngungunhánico. Para amar muitas mulheres. Amar sem piedade. A minha indiferença não o demovia.

– Mas se te txopo com este, não vale a pena – era uma ndioca, pequena fisga feita com elástico de calcinhas, amarrado num metal em V, cujas balas são pequenos arames dobrados. – É amor de poucos dias mas intenso, para amantes ocasionais, basta se tacharem acabou.

– Não obrigado! Eu já não amo. O amor tem preços que a minha idade e o meu bolso já não conseguem sustentar.

– Este tem desconto, patrão. Com este as mulheres…

– Não, pá! – nem quis ver a ferramenta de amor seguinte – Já disse que não! Deixa-me em paz.

O puto desanimou e os braços desfalaeceram nos ombros como um sol sem forças no raiar, anoitecendo precocemente. O ar de esperto transmutou-se para um rosto cansado. A voz agora mais inocente, sem a maldade de negociante, inclinado ligeiramente para o lado como um pintaínho tentando perceber o mundo para além dos limites da capoeira:

– Então, tio, estô pidir qualquer coisa para pão.

Dei-lhe a qualquer coisa, à medida do meu bolso, mas pouco para as suas fomes. Agradeceu sem entusiasmo. Quando se ia embora, uma curiosidade bateu-me à porta:

– Ouve, miúdo, porque vendes amor assim, avulso, e não vendes aos pares, como é suposto as pessoas amarem-se?

– É para provocar desequilíbrios e baralhar os sentimentos. Entre os amantes, os sentimentos não devem ter a mesma intensidade. Relações equilibradas tiram-me o negócio.

– Mas desculpa cá, ó Cupido, essas coisas que espetas nas pessoas, densifectas?

Gaguejou e demorou a responder, antes de se ir embora:

– Sabe, tio, são os riscos do amor…

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