Para continuarmos  a fazer jornalismo independente dos políticos e da vontade dos anunciantes o @Verdade passou a ter um preço.

 
ADVERTISEMENT

“Não há espaço para o ProSavana”

Onde é que o Governo vai encontrar espaço para a implementação do ProSavana? Esta é a questão levantada por Calisto Ribeiro, delegado provincial da Associação Moçambicana para Ajuda Mútua (ORAM) em Nampula, que receia que haja confl itos durante a fase de reassentamento das comunidades para dar lugar ao projecto. Calisto Ribeiro considera que o desconhecimento das leis por parte dos administradores e de outros quadros dos governos distritais é um facto, daí a violação sistemática dos direitos das comunidades por parte dos investidores (estrangeiros em particular).

@Verdade – O que é e o que significa ORAM?

Calisto Ribeiro (CR) – A ORAM significa Organização Nacional de Ajuda Mútua. Trata-se de um organismo que se dedica ao apoio e fortalecimento das capacidades das comunidades locais no que toca aos direitos de terra e recursos naturais. Ela foi fundada em 1992, e abriu a sua delegação em Nampula em 1996. Tem como objectivo o fortalecimento das capacidades da população local, através do uso sustentável da terra e do conhecimento da respectiva lei, e cobre todos os distritos da província de Nampula, com excepção dos da Ilha de Moçambique e Nacala-Porto.

@Verdade – O que é que já foi feito para melhorar a vida da população?

CR – Desde que iniciámos os nossos trabalhos, um pouco por toda a província de Nampula, já delimitámos cerca de 100 comunidades e legalizámos mais de 50 associações comunitárias. Por outro lado, ajudámos as comunidades a sentirem-se autoras do seu próprio desenvolvimento, conhecendo os seus direitos e obrigações sobre a gestão sustentável do uso e aproveitamento da terra, fauna e florestas, lobby e advocacia, e assegurando que haja um bom relacionamento com todas as componentes interessadas na capacitação das comunidades.

A segunda componente é a delimitação das terras comunitárias que é um processo de preparação das comunidades, que culmina na definição dos limites de uma determinada comunidade ou a definição dos limites da área que pertence a um grupo de camponeses que nós chamamos associações.

A terceira componente é a delimitação e identificação de todas as características de uma comunidade, ou seja, saber onde as comunidades cultivam a terra, área de habitação, florestas, as infra-estruturas comunitárias, as igrejas, mesquitas, fontes de água, estradas, lugares históricos, entre outros.

Todo esse historial é posto num mapa que é preparado pela própria comunidade, num trabalho que envolve todos os géneros, sem se esquecer os jovens que têm ajudado bastante na descoberta das zonas com recursos naturais. A quarta componente é a que nós chamamos reforço ao associativismo. Ela visa legalizar as associações existentes e criar ainda outras.

Ajudamos a resolver os problemas que o Governo não consegue resolver. No início da campanha agrícola, por exemplo, com destaque para a produção de tabaco, algodão, entre outras culturas de rendimento, há uma espécie de acordo entre os produtores e os fomentadores, que prometem que numa determinada campanha vão pagar valor X de algodão ou de tabaco, mas, quando chega o momento das colheitas e comercialização, o produto já não tem o mesmo preço acordado no início da campanha, os preços são outros, muito baixos.

Por outro lado, na altura da comercialização, as balanças são adulteradas, não têm o mesmo peso real e também um outro elemento importante nesse tipo de jogo é que os produtos são classificados de uma forma fraudulenta e injusta.

Por exemplo, o tabaco de primeira é tido como de segunda e este como de terceira e, por fim, afirmam que o tabaco não tem valor comercial, obrigando, assim, os produtores a vender a preços baixíssimos. Todos os anos há reclamações dos camponeses, e o mais grave é que nunca tiveram apoio por parte do Governo. Daí que estamos a organizar todas as associações ligadas à produção agrícola para perceber o seu problema e posterior ajuda. A quinta componente está ligada ao género.

Desde que estabelecemos a nossa organização constatámos que há fraca participação das mulheres no processo de governação participativa, e isso tem a ver com hábitos culturais. Elas, em algumas situações, não podem sentar-se ao lado dos homens e isso é muito visível quando vamos às comunidades rurais e pouco escolarizadas. Nós queremos lutar para que os homens e as mulheres se misturem e se sintam iguais.

@Verdade – Quantas associações de mulheres já criaram?

CR – Já criámos mais de 50 associações, pelo menos as legalizadas, não tenho metas concretas, mas tenho a convicção de que já atingimos esses números.

@Verdade – Qual é o vosso principal objectivo em relação às comunidades?

CR – Queremos transformar as associações em movimentos distritais, de modo que sejam capazes de fazer reclamações ou pressionem a quem de direito e os fomentadores dos respectivos produtos de rendimento e alimentares, o Governo e os investidores a tomarem medidas correctas.

Queremos que as comunidades conheçam os seus direitos de uso e aproveitamento da terra e dos recursos naturais, uma vez que elas já possuem uma estrutura de base e algumas com acesso ao apoio e financiamento de algumas organizações. Há comunidades com iniciativas e que criaram instituições com capacidade; estamos a falar das comunidades dos distritos de Moma, Angoche e Mogincual, que são potenciais produtores de arroz.

Em tempos idos, aquelas regiões eram consideradas celeiros, mas, a uma dada altura, perderam o nível de produção, e fomos confrontados com essa preocupação, uma vez que não havia produção por falta de mercado. Sugerimos a criação de uma cooperativa que pudesse ajudar-lhes.

@Verdade – O que motivou a escolha daqueles distritos para a implementação das vossas actividades?

CR – A escolha dos distritos e das comunidades depende das características apresentadas por essas regiões. A grande pressão está ligada à terra, com destaque para os recursos naturais. A terra é um elemento fundamental. Outro problema tem a ver com a existência de conflitos de terra, e, por último, o desejo das comunidades em delimitar a sua área.

Começámos com cinco distritos, destacando Malema, Ribáuè, Moma e Angoche, porque apresentavam uma das componentes acima citadas. Os de Malema e Ribáuè têm a componente de agricultura e Moma e Angoche têm recursos naturais.

@Verdade – Há comunidades que tiveram conflitos de terra com certas entidades nesses distritos?

CR – Assistimos a um conflito no distrito de Angoche, na região de Natire, em Namitorya, e outro em Moma, sobretudo numa região potencialmente rica também em recursos florestais. O primeiro conflito no qual nós interviemos foi a área que envolvia a população da comunidade de Natire em Namitorya e a área ocupada pela antiga empresa Companhia Comercial de Angoche (CCA), e depois passou a ser ocupada pela Gani Comercial.

Foi um dos grandes conflitos a que assistimos. As comunidades estavam a ser obrigadas a abandonar a terra e a lei de terra é clara nesse tipo de caso. O problema teve vários contornos, mas a comunidade acabou por ganhar o direito de uso e aproveitamento da terra naquelas zonas.

Em Moma, na região de Chalaua, assistimos a uma situação envolvendo a Condor, uma empresa ligada à construção e comercialização de insumos agrícolas, e a comunidade de Nailoconi. Mas a população foi muito activa, tendo conseguido solucionar o problema. O terceiro caso deu-se no distrito de Meconta, particularmente na comunidade 25 de Setembro, na vila do posto administrativo de Namialo.

Graças ao apoio da ORAM, a população não perdeu cerca de 500 hectares de terra a favor de uma organização privada. Além desses casos, tivemos igualmente problemas relacionados com o acesso aos recursos florestais e nós apoiámos as comunidades, que conseguiram vencer.

@Verdade – Como se têm caracterizado os conflitos nas comunidades onde trabalham?

CR – É muito caricato. Os conflitos não são somente entre as comunidades e os investidores, mas também acontecem entre comunidades circunvizinhas, tudo porque há suspeitas de existência de pedras preciosas numa determina zona. Ou seja, os conflitos acontecem porque as comunidades acusam-se de usurpação de áreas.

@Verdade – Os investidores têm violado sistematicamente os direitos das comunidades?

CR – Sim. Primeiro, porque o Governo está muito fragilizado. Falo isso com conhecimento de causa e com evidências. Creio que conhecem o projecto Lúrio Green Resources. Trata-se de uma iniciativa que, aquando da sua implantação, ignorou alguns aspectos importantes, nomeadamente as consultas comunitárias, demarcações de terra e identificação das áreas. Ou seja, foram feitas de forma inapropriada, sem informação clara.

Por exemplo, a zona de Namina, no distrito de Ribáuè, foi delimitada, mas havia comunidades que já estavam em risco e, quando se aperceberam dessa situação, várias organizações da sociedade civil ajudaram as populações a protestarem contra a violação dos seus direitos, obrigando a Lúrio Green Resources a fazer a revisão dos seus planos, tendo sido estabelecidos acordos e parcerias.

Essa situação tem a ver com questões técnicas, falta de conhecimento e medo das autoridades comunitárias. Está previsto na lei como se deve fazer as consultas comunitárias, pois não se trata de quaisquer eventos, pelo contrário, são um processo e os encontros devem ser preparados com antecedência para permitir a participação das comunidades.

@Verdade – Têm sido comum essas situações de ausência de consultas comunitárias?

CR – Como dizia, é uma questão técnica, porque há falta de conhecimento das pessoas que lideram esses processos. Por exemplo, no distrito de Eráti, não me lembro muito bem do ano, houve interesse por parte de um investidor sul-africano na área de exploração florestal.

Ele requereu uma determinada área de exploração e o processo devia ser seguido de uma consulta comunitária, e nós propusemo-nos a acompanhar a consulta. Porém, no dia combinado, o investidor chegou e o Governo estava representado por um fiscal comunitário do distrito.

Chegada a hora, este ordenou que se começasse a consulta e nós mandámos parar porque não havia condições para acontecer, porque ela deve terminar com uma acta de acordo com a lei, que deve ser assinada pelo governo do distrito, o administrador, o chefe do posto, o investidor e as comunidades locais, mas naquele encontro só estavam duas partes, o investidor e as comunidades.

@Verdade – Os nossos administradores desconhecem os processos normativos vigentes em Moçambique?

CR – Eu penso que sim. Por causa da rotatividade dos quadros, somos obrigados a repetir acções de divulgação das leis nos mesmos distritos. Imagine que nós trabalhamos num distrito com o administrador, o director das actividades económicas, o secretário permanente distrital e depois um ou dois são transferidos para outro distrito e vêm novos.

O que acontece muitas vezes é que os que vêm nunca lidaram com os documentos normativos ligados à terra, ao ambiente. Não quero generalizar, mas acredito que alguns dirigentes não conhecem a lei o que para mim é estranho. Todos os dirigentes deviam, no mínimo, dominar os documentos que guiam os destinos do país.

@Verdade – Qual é a vossa opinião em relação ao ProSavana?

CR – Este programa também está a levantar muitas inquietações, sobretudo a sua implantação e como serão tratadas as populações abrangidas. Duvido muito que haja terra para a aplicação do programa. Digo isso porque tenho exemplos concretos.

Ora vejamos: saindo da cidade de Nampula para o distrito de Nacala não se anda meio ou um quilómetro sem encontrar uma comunidade; saindo ainda da cidade de Nampula para o distrito de Malema não se ultrapassa um ou dois quilómetros sem depararmos com uma comunidade. Então a pergunta é esta: de onde vai surgir o espaço para implantar o projecto que se espera ocupe uma extensa área de terra?

@Verdade – Quais são os prováveis conflitos que poderão emergir no âmbito do ProSavana?

CR – O primeiro conflito que acho que poderá emergir é a transferência compulsiva das comunidades locais. Quer queiramos quer não, o projecto vai ter de desabrigar muitas pessoas das suas respectivas zonas nativas, o que gerará conflitos, uma vez que haverá provavelmente resistência por parte das populações locais.

Mas também acho que haverá conflitos de ganhos ou perdas, caso não tirem benefícios das zonas por elas “libertadas” para dar lugar ao programa. E há questões que devem estar bem claras. Se é para reassentar as populações, tudo bem, mas o modelo de reassentamento deve ser claro, sobretudo na criação de condições necessárias para tranquilizar e satisfazer as comunidades.

Durante o processo de abandono das suas casas elas não deixam apenas a habitação, mas também as suas machambas, árvores fruteiras, entre outras coisas. Estas comunidades, onde forem reassentadas, não vão encontrar cajueiros, papaieiras entre outras árvores por elas deixadas, então essas coisas que parecem pequenas podem ser motivos para criar conflitos.

@Verdade – Corre-se o risco de os moçambicanos ficarem sem terra para habitação e para a prática da agricultura de subsistência?

CR – Não tenho dúvidas. Vamos ter pessoas sem terra, e não só. Duvido muito que o programa venha a ter sucesso. Nós olhamos o ProSavana a partir do exemplo do Brasil, e os investidores dizem que não poderão ser usados os mesmos modelos aplicados no Brasil. Estamos com receio de que não haja terra suficiente para o projecto.

O ProSavana pretende ocupar extensas áreas de terra e essas áreas não existem porque já estão ocupadas pelas comunidades, não vejo sequer um espaço de Nacala à cidade de Nampula, onde não se encontre uma habitação. Para encontrarmos uma área despovoada temos que ir pela via de Murrupula, posto administrativo de Caxuxo, em direcção ao distrito de Malema. Aparentemente é uma zona pouco povoada, e acredito que é difícil andarmos mais de dois quilómetros sem depararmos com uma casa à beira da estrada.

Não me parece haver terra, mas também pode haver se o modelo do ProSavana em Moçambique for para envolver as comunidades como parte desse processo, e existir uma ligação clara entre estas e o programa. Mas também acredito que as pessoas nas comunidades rurais estão de olhos abertos e não vão deixar que isso aconteça. Pode acontecer em alguma situação como vimos nas areias pesadas de Moma, ocupada pela multinacional Kenmare, onde a população foi enganada e obrigada a deixar as suas áreas.

@Verdade – Qual deve ser a posição do Governo nesse programa?

CR – É de liderar. O Governo tem de estar à frente do programa. Acredito que tudo o que está a ser previsto vai ser respeitado, mas se a liderança for fraca ou incapaz, acho que grande parte das coisas que estamos a afirmar não será respeitada e a terra será explorada de forma desenfreada. Deve haver respeito pela lei de terras, pelas comunidades locais, e quem pode assegurar a sua aplicação é o Governo, que deve deixar de ser fantoche e de estar contra o seu povo.

@Verdade – Como membro das organizações da sociedade civil em Moçambique, o que tem a dizer da actual governação?

CR – Penso que temos um país pacífico, em que as pessoas conseguem ouvir e mesmo aborrecidas conseguem conter os ânimos. E essa maneira de ser ajuda-nos a seguir certas situações, mas penso que a governação precisa de muita atenção em muitos aspectos. É preciso ouvir muito o povo e auscultar a opinião pública.

O que acontece é que não fica bem prometer nas campanhas eleitorais e quando vencer ignorar aqueles que os elegeram. Eu acho que é preciso respeitar essa decisão do povo e a confiança que ele deposita no Executivo moçambicano. A confiança que o povo dá merece consideração por parte do Governo.

A governação do partido Frelimo é aquela que conseguiu manter a paz no país e tem tentado atrair alguns sinais de investimentos para o país, um ambiente politicamente favorável para mais investimentos e contribuições externas. Mas, por outro lado, esses investimentos, essas contribuições externas que vêm de outro lado devem beneficiar o povo.

WhatsApp
Facebook
Twitter
LinkedIn
Telegram

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

error: Content is protected !!