Remando contra o desaparecimento total da sua cultura, na província de Maputo encontrámos jovens com uma obsessão especial: Resgatar, preservar, promover e perpetuar no tempo e no espaço os fragmentos de um combate secular que se abrigam numa dança, o Muthini, dos quais se deve a visibilidade de Marracuene. Conheça-os…
Em Ronga, uma das línguas faladas na província de Maputo, o termo Madzolonga deriva da palavra Dzolonga que é o singular do termo primitivo Confusão. Na verdade, esta expressão, Dzolonga, interpretada com base no seu sentido primário, possui um sentido negativo e/ou depreciado quando se refere a uma pessoa.
Mas é como se chamou o grupo de dançarinos, maioritariamente, constituído por pessoas idosas em que se formaram os actuais membros da Associação Cultural Nhuku Wa Mudrimi, que praticam a dança Muthini.
A génese do Grupo Dzolonga ocorreu durante a década de 1990. Esta colectividade apresentava- se regularmente nas cerimónias políticas e mágico- -religiosas do dia dois de Fevereiro, o Gwaza Muthini.
Com o contínuo desaparecimento físico dos fundadores e praticantes do Muthini, nos princípios dos anos 2000 em diante, a administração local do distrito de Marracuene compreendeu que era importante massificar a prática da dança em alusão, daí que se tenha criado um projecto nesse sentido envolvendo um conjunto de 60 jovens, os quais ficaram conhecidos pelo nome de Guerreiros de Muthini.
Porque se mostrou uma iniciativa bem-sucedida, na análise dos dirigentes do Grupo Dzolonga, alguns jovens que compunham Os Guerreiros de Muthini foram seleccionados para integrar a colectividade-mãe, o que contribuiu para que tais rapazes aprendessem outras modalidades de dança como, por exemplo, o Xigubo, o Ngalanga e a Marrabenta.
Aliás, foi ao abrigo do referido projecto que maior parte dos jovens de Marracuene que, actualmente, exploram a dança, especificamente o Muthini, teve o seu primeiro contacto com a referida modalidade artística.
De qualquer modo, porque é que este grupo ficou conhecido pelo nome Dzolonga? O facto é que nos primeiros dias da sua criação, o referido grupo não possuía nome. Havia uma grande indecisão, entre os agremiados, para a selecção da denominação.
A associação à vibração que a mesma colectividade expressava sempre que se apresentava em palco fez com que o seu público assim o chamasse: Confusão, mas não no sentido depreciativo, como se pode perceber. Ou seja, com a intenção de traduzir a ideia de uma agremiação artística pujante, que mexe com tudo e com todos. Animava e alegrava as pessoas.
No roldão de um evento anormal decorrido ao longo do ano 2004, o Grupo Dzolonga experimentou uma crise que resultou numa autêntica instabilidade. Foi no mesmo contexto que alguns dançarinos jovens foram solicitados pela União das Cooperativas Agrícolas de Marracuene (UCAM) para participar num projecto de promoção de entretenimento sadio, o que incluía a realização de capacitações em matérias de dança, teatro e artesanato, aos jovens do distrito.
Tributo aos camponeses
Em resultado da referida formação, os jovens criaram um bailado, O Camponês, exibido na Conferência Internacional de Agricultura realizada em 2004, em Maputo. No entanto, a inércia que se instalou no seio da UCAM na realização de mais eventos acabou por instigar os rapazes, de forma individual, a dar continuidade aos trabalhos já iniciados.
“A nossa origem, como pessoas humanas, a nossa educação incluindo a formação e/ou ligação ao mundo da dança (e das artes no geral) devem-se aos camponeses que são os nossos pais”, considera Cândido Mazuze que justifica a opção da coreografia O Camponês.
Com o passar dos anos, em resultado de alguns problemas que surgiram, o grupo dos jovens dançarinos afastou-se da UCAM, tendo, imediatamente, sido cedido o espaço do Clube de Marracuene com a intervenção da Associação dos Amigos e Naturais de Marracuene.
Na altura, “a maior parte dos nossos pais e encarregados de educação faziam parte da UCAM daí que criar o Grupo Nhuku Wa Mudrimi era uma forma de lhes prestar homenagem”.
Muthini: uma dança excludente
A dança Muthini é especificamente protagonizada por homens, porque ela é, essencialmente, guerreira. Conforme se sabe, no passado, a mulher podia apoiar de diversas formas os homens nas batalhas, mas, geralmente, não combatia.
Esta justificação, ainda que não aceite pacificamente pelas mulheres, é uma das explicações que se nos ofereceram para fundamentar a reduzida presença da mulher na prática do Muthini. De qualquer modo, Tchaka, António Mazuze no assento, orquestra outras desculpas para convencer-nos: “Actualmente, no nosso grupo, temos tido a sorte de incorporar meninas que estudam e que trabalham. Deriva daí que quando elas alcançam um certo nível de formação, são atraídas por outras actividades, o que faz com que, muitas vezes, abandonem a dança”.
Além das inquietações dos namorados, o zelo e a insegurança dos pais em relação ao envolvimento das filhas em grupos culturais com prevalência de rapazes é outro factor que reduz a visibilidade da rapariga na dança.
Por essa razão, “há certos pais a quem, pelo facto de permitirem que as suas filhas pratiquem a dança, com um grupo de rapazes, cheios de barba, como o nosso, sem desconfiança, devo um especial e profundo respeito”, comenta Tchaka.
Mas, convenhamos, para Tchaka, que também é estudante de música na Escola de Comunicação e Arte, “há vezes em que procuramos apresentar o Muthini de forma genuína (o que é praticamente impossível porque a referida dança sofreu muitas transformações), sendo que é em tais momentos que sacrificamos a participação da mulher. Ou seja, existem certos aspectos referentes ao Muthini os quais nós pensamos que é possível resgatarmos e, desse modo, procedemos”.
Preservar a originalidade
Cândido Mazuze, estudante do Curso de Relações Públicas e bailarino pelo Nhuku Wa Mudrime, considera os Festivais Nacionais (em que o grupo participou muito recentemente) como uma plataforma favorável para a exibição das danças tradicionais moçambicanas na sua originalidade. Por essa razão, “penso que não faria muito sentido exibir o Muthini com a participação da mulher”.
Além do mais, “o que nós constatámos é que a luta protagonizada pela mulher tem sido muito espectacular e, de facto, de espectáculos nós precisamos, mas, há vezes em que necessitamos de apresentar o Muthini (entenda-se, os movimentos combativos) na sua originalidade. É nesses momentos em que a mulher fica excluída”, acrescenta Tchaka.
Um desencontro presente
Diante da manifesta dissonância entre a necessidade de preservar a originalidade da dança Muthini, bem como a de incluir a mulher como uma protagonista válida instala-se uma questão salutar: “Como é que se faz a gestão do desencontro entre a vontade feminina de praticar o Muthini, sendo esta uma dança masculina?”
A verdade é que “as mulheres participam em todas as nossas aulas, mas há danças em que elas têm algum protagonismo como, por exemplo, o Xingomana, o Xitende, a Marrabenta. Nós até gostaríamos que elas dançassem o Xigubo, por exemplo, mas há momentos em que queremos apresentar a dança de forma genuína e, nisso, a mulher não joga um papel preponderante. Fica excluída”, reitera Tchaka ao mesmo tempo que formula uma posição, cada vez, mais elaborada:
“Em relação ao mesmo tópico, eu tenho feito outro tipo de análises sobretudo quando se trata de algumas políticas referentes à mulher no país: é preocupante notar que tais políticas são simplesmente defensoras da ideia da inclusão da mulher sem tomarem em conta os contextos.
Penso que na cultura devemos saber distinguir a arte da política, porque assim corremos o risco de desprover algumas modalidades artísticas da sua originalidade. Há certas actividades que só fazem sentido quando protagonizadas (apenas) pelos homens ou pelas mulheres”.
Cândido Mazuze introduz uma questão não menos importante: “Porque é que não questiona o facto de o tufo, pelo menos, na parte da dança, ser exclusivamente praticado pela figura da mulher? A verdade é que ela é uma dança sensual e o homem, contrariamente à mulher, nunca teve a necessidade de exibir a sua sensualidade.
Por isso, penso que seria muito caricato ver um homem a querer exibir-se como as mulheres o fazem no tufo. O mesmo acontece em relação à dança Muthini. A mulher não tem resistência suficiente para lutar. O Muthini é uma dança guerreira”.
O que é o Muthini?
A pergunta tem várias respostas, mas a que nos foi relatada pelos seus praticantes (resultado da sua relação com a dança e com alguns mestres seus perecidos) marca que é, essencialmente, um conjunto de movimentos combativos que surge com um grupo de vítimas do movimento Mfecane, muitos dos quais, quando chegaram à província de Maputo, em sinal de rebeldia aos seus familiares (ou ancestrais) com quem guerreavam, rejeitaram o seu nome adoptando outros.
Um dos impactos disso foi a formação de novos territórios com novas designações territoriais em termos de nomenclatura. Para os jovens consorciados na Associação Cultural Nhuku Wa Mudrimi, Fernando Mabjaia foi o último mestre e precursor da dança Muthini. Em vida participou na Batalha de Gwaza Muthini.
“Quando os Mabjaia chegaram a Marracuene dominaram os povos locais, criando uma nova estrutura. Acredita-se que terá sido no mesmo contexto, mas acima de tudo, pela necessidade da existência de alguma defesa que surge o Muthini, um conjunto de tácticas de combate escudadas no meio de uma dança”, considera Tchaka.
O Muthini é assim uma dança que define a vivência de um povo. Nos dias que correm, as batalhas que a população de Marracuene enfrenta não são, necessariamente, militares mas precisam de uma força quase equivalente àquela que os seus ancestrais, em 1895, empregaram para combater contra o seu inimigo, posicionando o dia dois de Fevereiro, de cada ano, entre os mais lendários no calendário nacional.
Provavelmente, seja essa força que moveu Samira, uma jovem de 18 anos, que pratica a dança tradicional, a reivindicar entre os seus mestres o abraço ao Muthini apesar do facto de ser considerada uma dança masculina.
Mas é, como diz: “Tenho uma profunda relação com o Muthini, gosto e não danço simplesmente por emoção, mas em relação à não participação da mulher no Muthini, se bem que não deve participar por ser isso, penso que é melhor que se decida que não participemos em nenhuma outra expressão de dança, porque isso é exclusão fundamentada na questão do género”.
Um outro jovem praticante da referida dança, Artur, estudante da 12ª classe, em Marracuene, considera que “da mesma forma que os nossos mestres afirmam que os nossos ancestrais desapareceram, receio que os mais velhos façam o mesmo e, com eles, a dança se esfume também”. Por isso, “penso que somos muito poucos para carregar o grande tronco que é a preservação do Muthini”.
Alguns integrantes da Associação Cultural Nhuku Wa Mudrimi participaram no Último Voo do Flamingo, filme moçambicano de autoria de João Ribeiro, protagonizando algumas danças como o Xigubo, a Semba, o Ngalanga e a Marrabenta.