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Morreu o escritor que levou consigo todas as palavras

José Saramago, o único escritor de língua portuguesa a quem foi atribuído o Nobel da Literatura, morreu ao início da tarde da passada sexta-feira, dia 18, na sua casa da ilha de Lanzarote, (Canárias, Espanha) onde vivia com a mulher, Pilar del Rio, desde que, em 1993, se auto-exilara, depois de o Governo português rejeitar a candidatura da sua obra, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, a um prémio literário europeu.

Contava 87 anos. Nos últimos dias os problemas de saúde haviam-se agravado e, visivelmente fragilizado desde o Verão de 2007, devido a doença cancerosa, morreu na sequência de “múltipla falha orgânica”, informou a Fundação José Saramago em comunicado divulgado imediatamente após a morte do escritor. O corpo do maior homem de escrita portuguesa contemporânea foi transportado num avião C- 295 da Força Aérea Portuguesa, tendo aterrado na tarde do dia seguinte (sábado) ao aeroporto militar de Figo Maduro, próximo de Lisboa. De helicóptero chegaram a mulher, Pilar del Río, a filha Violante Matos e a ministra da Cultura portuguesa Gabriela Canavilhas.

As flores de El Comandante

Posteriormente, o féretro foi transportado para os Paços do Concelho da Câmara Municipal de Lisboa onde esteve em câmara ardente até domingo. O caixão, aberto como já tinha acontecido em Lanzarote, ficou exposto na sala que tem o retrato do escritor Almeida Garrett pintado no tecto. Aos pés, uma fotografia de Saramago coberta de cravos e orquídeas. No rosto, sobressaíam os óculos – a imagem de marca do escritor – e, por cima, um pano branco deixava a descoberto o nó da gravata.

Alguém pousara dois cravos vermelhos no seu peito. À direita ficou a família e os amigos próximos, enquanto a mulher, Pilar del Río, recebia as inúmeras personalidades que entravam para o último adeus ao escritor. À esquerda, duas gigantescas coroas de flores. No bilhete lia-se: “Sentida homenagem do comandante Fidel Castro para José Saramago” e “Sentida homenagem do presidente Raul Castro”.

Durante toda a tarde de sábado, à volta da urna, foram passando pessoas para se despedir do mestre das letras, sobretudo gente anónima. Havia quem parasse, se benzesse e seguisse. Uns agarravam-se a livros do Nobel da Literatura. Outros levavam flores que deixavam aos seus pés. Havia quem tivesse pouca vontade de sair e fosse ficando. Um dos primeiros a chegar foi o poeta Nuno Júdice que lembrou que, “quando um escritor morre, é um mundo que desaparece, mas do Saramago ficará sempre a sua imaginação, a sua vida. Ele e os seus livros nunca deixarão de ser um exemplo”.

As personalidades foram passando ao longo de toda a tarde com destaque para o primeiroministro José Sócrates, o ex-presidente Mário Soares, líderes partidários e membros do governo. Ao todo passaram pelos Paços do Concelho cerca de 20 mil pessoas. O discurso da ministra da Cultura tocou bastante fundo. Gabriela Canavilhas citou uma carta de condolências que Pilar del Río havia recebido na véspera de um amigo: “Não há palavras, Saramago levou-as todas.”, disse, num tom sentido, Canavilhas, para depois continuar: “José Saramago foi a voz lúcida, inconformada, firme e insubmissa na luta contra a desigualdade entre os homens, esta sim a verdadeira miséria.”

A ministra considerou ainda que o escritor “usou a escrita para uma reflexão sobre as grandes causas da humanidade, edificando uma obra coerente, ousada, sólida, visando sempre a dignificação do Homem. Portugal homenageia hoje o homem, simples, sensível e corajoso. Portugal celebra em Saramago a sua humanidade, grandeza e universalidade, Portugal orgulha-se do escritor e engrandece-se”, acrescentou. Depois, a responsável pela pasta da Cultura deixou também um obrigado em nome do país. “Portugal agradece sentida e sinceramente o encontro mágico de Saramago com a literatura, o lugar único e perene que José Saramago ocupará para sempre na literatura e cultura do mundo.”

Portugal e Espanha choram a meias

Mas não foi só Portugal que chorou por Saramago nos últimos dias. Toda a Ibéria verteu lágrimas pelo “seu” escritor. A Espanha, onde Saramago viveu desde 1993 – altura em que se auto-exilou – até à passada sexta-feira, tomou-o como um dos seus. Saramago era um profundo iberista e, naquele seu tom desafiador e muitas vezes incómodo, em diversas ocasiões defendeu a união entre os dois povos. A Espanha reconheceu esse apreço e fez-se representar nas cerimónias fúnebres por María Teresa de la Veja, vice-presidente do governo, que lembrou “a voz mais humana e digna.

Hoje, somos milhões de pessoas que querem tomar a palavra para agradecer ao tecedor de esperança, para dizer que nunca perderemos os seus sonhos de vista, que hoje, graças a ele, graças a José Saramago, estamos um pouco mais perto deles”, acrescentou a governante. Também elementos da Esquierda Unida (EU) – coligação que integra o Partido Comunista Espanhol (PCE) – fizeram questão de estar presentes. Como disse um dos seus membros “ele (Saramago) sempre esteve perto dos pobres, dos desprotegidos e dos oprimidos e ao lado das causas justas. Era um homem com H grande.”

Até amanhã camaradas

A política também não podia ter faltado a este último adeus, ela que esteve sempre presente na vida do escritor, embora nestes últimos anos de uma forma arredia, pelo menos no que concerne à actividade partidária e ao seu PCP (Partido Comunista Português), do qual foi membro activo – chegou a ser presidente da Assembleia Municipal de Lisboa representando a coligação PS/PCP.

Por isso, os cravos vermelhos por ser um “comunista hormonal”, como se definiu, estiveram em grande número e os velhos camaradas lembraram a intervenção política do escritor. Aliás, os cravos vermelhos, símbolo da Revolução de Abril e consequentemente da liberdade em Portugal, cobriram o tejadilho do carro funerário e a urna, que foi carregada em ombros até ao crematório, no Alto de S. João, já no domingo. Nessa altura ouviuse: “Saramago, a luta continua”.

Jerónimo de Sousa, o secretário-geral do PCP, prometeu ao “camarada Saramago” um contínuo empenho na luta pelos “nobres ideais comunistas”. “José Saramago sabia que a sua obra e a sua luta seriam sempre algo inacabadas, mas que tinha valido a pena. E, por isso, para além do sentimento de perda, fazemos-lhe uma homenagem sincera, que não se quedará neste dia e neste ano da sua morte, fazendo-o como melhor sabemos fazer: prosseguindo o seu ideal.” Se Saramago ouvisse este depoimento, desconcertante como gostava de ser, talvez se despedisse dos seus irmãos de luta com um “até amanhã camaradas”, acreditando – foi sempre um ateu inveterado – que pudesse haver algo para além da morte.

~Reacções ao seu desaparecimento

 “É talvez o escritor português que maior repercussão teve – e teve repercussão em todo o mundo: em todo o mundo é conhecido, em todo o mundo é escutado. Eu, pessoalmente, perdi um amigo, Zeferino Coelho, editor de José Saramago “A obra de Saramago é cheia de curiosidade, de desejo, de perguntas e de angústias e de uma profundidade única sobre a sociedade portuguesa da qual os franceses se sentem tão perto e estão todos agarrados”, Bernard Kouchner, ministro dos Negócios Estrangeiros e Europeus de França “A sua obra tem pontos de maior controvérsia e outros de enorme grandeza.

Seguramente no futuro permanecerão aqueles trabalhos menos polémicos, de mais profundidade e até os mais simples”, Jaime Gama, presidente da Assembleia da República Portuguesa “Acho que devia ir para o Panteão Nacional. Acho que o Estado português deveria decretar luto nacional. Justifica-se porque era um português ilustríssimo”, Mário Soares, ex-Presidente da República.

 “Perdemos não apenas o maior escritor português, mas uma referência luminosa de dignidade e grandeza à escala universal”, José Manuel Mendes, presidente da Associação Portuguesa de Escritores “José Saramago é um dos grandes vultos da cultura portuguesa e representa uma perda para a cultura portuguesa”, José Sócrates, primeiro-ministro português “Escritor de projecção mundial, justamente galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, José Saramago será sempre uma figura de referência da nossa cultura.

 Em nome dos Portugueses e em meu nome pessoal, presto homenagem à memória de José Saramago, cuja vasta obra literária deve ser lida e conhecida pelas gerações futuras”, Cavaco Silva, Presidente da República de Portugal “Foi o intelectual português que mais amou e compreendeu o Brasil”, Lygia Fagundes Telles, escritora brasileira, vencedora da edição 2005 do Prémio Camões “Dele recordo, tanto como os livros inesquecíveis, os momentos partilhados, quanto nos aproximou sempre para lá das diferenças.

Saramago foi e será uma referência universal da grandeza e do desassombro, estimulando o espírito crítico, a bondade e a decência, a insubordinação cívica, o humanismo e a força transformadora da liberdade, mesmo nas circunstâncias mais rudes, quando parece dar-se um eclipse da própria esperança”, Manuel Alegre, candidato do PS à presidência da República “Estamos muito abalados, eu tinha-o visitado na semana passada, em casa, em Lanzarote, ele estava fraco mas muito calmo, e foi um encontro muito belo, que nunca mais esquecerei.

Perdemos um amigo, um grande autor, que era um autêntico farol para nós, um orientador em tempos difíceis”, Nicole Witt, agente literária de José Saramago na Alemanha “É o mais firme herdeiro da larga tradição do iberismo português. Poucos como ele, amaram e conheceram tão profundamente as nossas duas culturas”, Carmen Caffarel , directora do Instituto Cervantes (Espanha) “Será sempre recordado como um dos maiores escritores da língua portuguesa e da literatura mundial”, Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia “Saramago é um dos principais escritores da literatura universal e da língua portuguesa, com uma escrita de grande qualidade”, João Paulo Borges Coelho, escritor moçambicano, detentor do Prémio Leya 2009 “Era um escritor que tinha livros que partiam de grande ideias e grandes enredos e que fez muito pelos autores de língua portuguesa.

Com o Nobel, José Saramago abriu as portas não apenas à literatura portuguesa e aos escritores portugueses, mas ao conjunto de escritores de língua portuguesa”, José Eduardo Agualusa, escritor angolano “Estamos todos de luto. José Saramago deu um grande contributo aos escritores de língua portuguesa e ajudou a abrir portas e a aproximar aquilo que é a escrita dos países africanos de língua portuguesa, Mia Couto, escritor moçambicano “Saramago ainda tinha muito que fazer, para nos dar.

Meus Deus, ele foi muito cedo!”, Paulina Chiziane, escritora moçambicana “A sua perda é recebida com muita tristeza, particularmente pelos que têm apreço pela língua portuguesa e por sua importância cultural em tantos continentes”, Juca Ferreira, ministro brasileiro da Cultura “José Saramago veio recordar-nos de que há uma grande literatura portuguesa. Recordou-nos de que havia o extraordinário antecedente de Fernando Pessoa e a extraordinária contribuição de Eça, Carlos Fuentes, escritor mexicano

Vaticano não lhe perdoou

As declarações de José Saramago, tal como os livros, levantavam, não raras vezes, ferozes polémicas do lado daqueles que não apreciavam quer o seu estilo, quer as suas posições políticas e religiosas. O jornal oficial do Vaticano, “L’Osservatore Romano”, apelidou- o, na altura do Nobel, de “comunista inveterado”. Saramago retribuiu, considerando que não se podia ter confiança “nessa gente”. E que a Igreja Católica se confundiu “muitas vezes – demasiadas vezes – com uma associação de criminosos”.

Agora, na hora do seu desaparecimento, aquele órgão oficial da Santa Sé não recordou José Saramago num tom benigno, nem lhe concedeu perdão. “Foi um homem e um intelectual sem reconhecimento metafísico, ancorado até ao final numa confiança obstinada no materialismo histórico, aliás marxismo”, lê-se num artigo, à laia de obituário, no “L’Osservatore Romano”, citado pelo “La Repubblica”. Chamando-lhe “populista e extremista”, o texto qualifica o romance “O Evangelho segundo Jesus Cristo” como um “desafio à memória do cristianismo”. O artigo faz um julgamento feroz: “Atada como esteve sempre a sua mente por uma desestabilizadora intenção de tornar banal o sagrado e por um materialismo libertário que quanto mais avançava nos anos mais se radicalizava, Saramago não se deixou nunca abandonar por uma incómoda simplicidade teológica.”

As frases mais polémicas

 “Portugal deveria ser província de Espanha e integrar um país que se chamaria Ibéria para não ofender o brio dos portugueses”. Em entrevista ao Diário de Notícias em Julho de 2007. “O Deus da Bíblia não é de fiar: é vingativo e má pessoa”; “Sobre o livro sagrado, eu costumo dizer: lê a Bíblia e perde a fé!”. No lançamento do seu novo livro, Caim. “Deus é um filho da puta”. No livro Caim. “Não cumprimento Cavaco Silva”. Em entrevista a José Fialho Gouveia ao semanário Sol, em 2006.

 “A democracia é uma realidade que não existe. Quem verdadeiramente manda são instituições que não têm nada de democráticas, como é o caso do Fundo Monetário Internacional, as fábricas de armas, as multinacionais farmacêuticas”. Em entrevista ao jornal italiano La Stampa, em 2006. “A língua é minha, o sotaque é seu”. Em resposta a um estudante brasileiro que disse não perceber a sua pronúncia durante uma conferência.

“A estupidez não escolhe entre cegos e não cegos. É uma manifestação de mau humor, assente sobre coisa nenhuma, e pronto, acabou, nada mais”. A propósito da polémica em torno do filme Ensaio Sobre a Cegueira, realizado por Fernando Meirelles e inspirado no seu livro. “O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo”. Em Evangelho Segundo Jesus Cristo. “Não vou sentar-me outra vez no banco da escola primária”. Disse sobre o novo acordo ortográfico. “Dizem-se representantes de Deus na terra (nunca o viram e não têm a menor prova da sua existência) e passeiam-se pelo mundo suando hipocrisia por todos os poros”. Em Caderno de Saramago.

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