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Obituário: Morreu Bobby Womack, um dos últimos mestres da soul

O lendário cantor de soul norte-americano Bobby Womack morreu esta sexta-feira, 27 de Junho, aos 70 anos, escreve a revista Rolling Stone que cita um representante da editora XL Recordings e não avança as causas da morte.

Bobby Womack parecia sobreviver a tudo. Sobreviveu ao ostracismo a que foi votado pela comunidade musical quando, três meses depois da morte do seu mentor, Sam Cooke, casou com a viúva daquele. Sobreviveu à irritação de ver uma canção dos seus The Valentinos, It’s all over now, “roubada” pelos Rolling Stones (a irritação passou quando chegou o primeiro cheque de royalties).

Sobreviveu a 20 anos de dependência de cocaína. Sobreviveu à morte trágica de um irmão, assassinado, e de dois filhos (um num acidente em casa, outro por suicídio). Sobreviveu aos seus pares, os seus heróis, lendas como Sam Cooke, Otis Redding, Marvin Gaye, Wilson Pickett. Ultrapassou dois cancros, um na próstata, outro no cólon.

“Sobrevivi a muita coisa: à melhor música que a minha, a artistas que eram melhores que eu”, dizia ao Ípsilon em 2012. “Não percebo porque é que ainda estou aqui. A única coisa que me traz de volta é a música”. Bobby Womack sobreviveu para um último regresso, ao gravar com Damon Albarn, dos Blur, o álbum The Bravest Man In The Universe.

Estávamos em 2012 e Womack, músico no activo desde os oito anos, guitarrista exemplar, compositor talentoso, senhor de uma imponente voz soul, tinha 68. Dois anos depois, com uma digressão europeia marcada para breve, a sua editora, a XL Recordings, deu a notícia. Bobby Womack não sobreviveu mais. Morreu esta sexta-feira, aos 70 anos. As causas não foram divulgadas, mas a sua saúde era frágil: fora-lhe diagnosticado Alzheimer e sofria de diabetes.

“Verei o meu irmão na Igreja”, tweetou Damon Albarn em reacção à morte. Albarn fora responsável pelo renascimento do cantor no final da vida. Admirador da obra de Womack, convidou-o a participar em Plastic Beach, álbum de 2010 dos Gorillaz. A primeira abordagem não foi bem-sucedida. Womack desconfiava do apreço de Albarn e temia desiludi-lo – “achava que ele dava demasiado crédito a coisas que tinha feito há 35 anos”. Além disso, não fazia a mínima ideia do que eram e que música tocavam os Gorillaz. “Gorillaz? Só conheço os Monkees”, disparou.

Albarn insistiu, Womack acedeu. Gravou duas canções para Plastic Beach e uma delas, Stylo, onde colabora também o rapper Mos Def, tornou-se mesmo o primeiro single do álbum. Dois anos depois, chegava The Bravest Man In the Universe. Era o seu primeiro álbum de originais em 18 anos e era um álbum único: o velho e o novo, a tradição soul e a electrónica recente e a sua voz impondo-se sobre as produções de Richard Russel e Damon Albarn.

Em 1997 tínhamos voltado a recordá-lo quando Quentin Tarantino utilizou Across 110th street no genérico inicial de Jackie Brown (a canção, curiosamente, fora originalmente composta como banda-sonora do policial blaxploitation homónimo, estreado em 1972 e com Anthony Quinn como protagonista).

Nessa altura, voltámos às suas canções e redescobrimos a sua obra, num momento em que Womack regressava discretamente à actividade, depois de um longo período de desistência em que pôs a guitarra de lado para passar os dias em frente à televisão, aborrecendo-se. Em 2012, quando conhecemos The Bravest Man In The Universe, vimo-lo verdadeiramente perante nós. Vivo, activo.

O “pregador” estava de volta (era conhecido como “The Preacher” devido às longas dissertações com que apresentava as canções nos concertos). Para este ano está marcada a edição de um novo álbum em colaboração com Damon Albarn e Richard Russell, onde ouviremos convidados como Stevie Wonder, Rod Stewart, Snoop Dogg ou Ronald Isley, dos Isley Brothers. Womack chamou-lhe The Best Is Yet To Come, título que ganha uma trágica ressonância agora que Albarn corre para o twitter para prestar homenagem ao ídolo. “Verei o meu irmão na igreja”.

Palavras apropriadas. Foi precisamente na igreja que, para Womack, dono de um percurso de vida muito pouco católico, tudo começou. Bobby Womack nasceu a 4 de Março de 1944 em Cleveland. Filho de um operário da indústria do aço, músico em part time (a mãe tocava órgão na Igreja Baptista da Comunidade), não tinha ainda dez anos quando integrou os Womack Brothers, o grupo que o pai criou reunindo os cinco filhos.

O fervor religioso dos pais impôs que o grupo se dedicasse ao gospel, pondo de parte a profanidade da soul e do rhythm’n’blues, cuja interpretação seria garantia de condenação eterna. Tal não demoraria a mudar. Porque, entretanto, dá-se o momento decisivo no percurso de Bobby Womack. Sam Cooke, o grande cantor soul, o autor de A change is gonna come, vê o grupo actuar em 1956 e propõe-se ajudá-los na carreira.

Em 1960, Cooke funda a sua própria editora, a SAR Records, assina o quinteto e produz e compõe os arranjos do primeiro single dos irmãos, Looking for a love. A banda já não se chamava Womack Brothers, mas sim The Valentinos, e Bobby Womack e os irmãos já tinham abandonado o lar familiar – à conta de terem trocado o gospel em favor da soul, o pai expulsara-os de casa.

“Ele queria que eu fosse para o céu, mas eu nunca vi ninguém voltar do céu e dizer: ‘Eh pá, o céu é muito bom’”, recordava ao Ípsilon. Womack acabaria por perdoar o pai. “Ele não sabia para mais. Pensava que podíamos entrar no céu a cantar. Mas, como digo neste disco (The Bravest Man In The Universe), às vezes é melhor ser mau. Penso na minha vida e concluo isso: apesar de ter sido tantas vezes mau, sobrevivi. E os bons caíram. Onde está a justiça?”

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