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Pandza: Me transporta!

Ela deve ter imaginado uma cena de telenovela brasileira quando fechou os olhos, ajeitou os fios de cabelo postiço, abrasileirou o sotaque anasalado pelo changana, e ordenou, em tom sedutor:

– Me transporta!

– Para onde? – não que eu não soubesse que o destino dela era aquele lugar para onde se levam, um ao outro, os amantes. Um bom motorista como eu, adivinha o destino pelo rosto de qualquer passageiro.

– Para a lua, ué! – luziu no escuro a alvura amarelada dos dentes.

– À lua não se vai a pé – adverti.

– Quem disse que eu vou a pé? Quem não tem transporte próprio, anda de chapa.

– Mas eu não sou chapa.

– Mas tu é motorista… meu motorista. – disse, melando mais a voz. Quando levantou os braços, para me abraçar, senti-le o perfume exótico das axilas.

– E tu queres ir à lua de chapa?

– O teu chapa chega lá. Anda cá – puxou-me pela camisa entreaberta, deixando-se cair, lentamente, para trás. Caímos sobre uma capulana estendida que por nós esperava no chão. O baque foi suave, amortecido pelas ádipes traseiras dela. Depois voltou a sorrir para dizer – não se deixa um um passageiro a espera, senão aparece outro chapa e me leva.

– São sete e meio. É pronto pagamento – retorqui.

– Só pago quando chegar ao destino! – reivindicou, conhecedora dos seus direitos de passageiro.

Deitada, deixava perceber toda a paisagem debaixo dos trajes que a embrulhavam. A luz do xiphefo, candeeiro à petróleo, realçava as lombas que a moldavam. Comecei a salivar, com aquela apetência de chapeiro diante de uma estarda esburacadas, e disse-lhe:

– Sim, sou teu chapa. E tu és a minha estrada.

– Então, me percorre – respondeu-me, desabotando a blusa, e expondo todo o asfalto do seu corpo –, chapa não gosta de velocidade em estradas esburacadas? Então viaja em mim, mas não esquiva meus buracos.

– Deixa meter combustível.

Em dois tragos esvaziei o combustível azedo que me restava no copo e senti os calafrios do álcool estremecer-me a chaparia. Certifiquei-me que tinha os óleos em dia e posicionei-me para a viagem.

– Liga a ignição, então.

Já estava ligada. A minha carroçaria trepidava de impaciência. Um chapa não gosta de ficar muito tempo parado.

– Já está ligada.

– Então acelera, motorista – disse, de olhos fechados.

Como chapa que se preze, fiz um arranque brusco, pelo asfalto esburacado do corpo dela. O êmbolo do meu motor de quatro tempos fazia movimentos de vai e vem, admissão, compressão, explosão e escape. Eu meti uma mudança, ela esgazeou e sussurrou:

– Acelera…

Eu acelerei, mas tive que fazer uma travagem brusca, mesmo à chapa, quando o celular dela chamou. Ela nem ia atender mas quando olhou para o visor e percebeu quem era, gritou:

– Paragem cobrador. É o meu marido.

Saltou do chapa antes deste estar totalmente parado, mudou o sotaque, a expressão do rosto e o tom desavergonhado de voz. Falaram. Disse-lhe que estava tudo bem, justificou-lhe a possível demora, dizendo que estava no mercado e havia falta de transporte.

– As paragens estão cheias.

Quando desligou e olhou para mim, as pálpebras descaíram e perdeu aquele ar inocente de mulher fiel. Sorriu e disse, abrasileirando a voz:

– Me leva, motorista.

E acelerei, sem esquivar os buracos da estrada precária, mas não levou muito tempo para que começasse a sentir os parafusos soltos do meu corpo a tilintar, os amortecedores a reclamarem, as minhas chapas a trepidarem violentamente, o motor a soluçar deseperadamente e aquele vazar inevitável de todos dos meus pneus carecas. Parei.

– O que foi, amor? Encurtamento de rota?

– Não, acabou combustível.

– Mas como? Não encheste o tanque há pouco?

– Não deu para encher, o combustível está caro.

Vestiu-se, reclamando, por tê-la deixado numa paragem distante do destino.

– Espera, só um tempinho para reabastecer. Vou te levar.

– Vou ter que fazer ligações. – disse, indo-se.

Enquanto ela se ia embora, e eu pensava em reabastecer mais uns copitos, um agente de trânsito aproximou-se, de bloco e esferográfi ca, pronto a multar-me:

– Excesso de velocidade! Conduz mal e nem se protege.

– Mas eu usei cinto de segurança, chefe.

– Cinto de segurança? Nestas estradas? Achas que isso basta para te meteres nestes buraco?

Recebendo a multa e as palavras do agente, levei a mão à cabeça. Só então me apercebia que acelerara pelos buracos daquela estrada sem o mínimo de proteção, um preservativo que seja.

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