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Malambe – Uma carta de nada, nascida em Nhamabira para João Sem Vontade e Francisco Pega Merda

Telefonei, num dia desses, nos finais de Dezembro, com o Choriro debaixo do braço, andando por sobre as pedras perigosas da albufeira de Cabora Bassa, a alguns dos meus amigos, para com eles compartilhar o riso que dá ler os vossos nomes, pronunciálos em voz alta, ou ouvi-los de alguém e, depois, rendido à imensa capacidade de imaginação esquizofrénica de Ungulani Ba Ka Khosa, suspirar e voltar a rir às gargalhadas: João Sem Vontade, Francisco Pega Merda!

O sacana do tuga que vos deu esses nomes, nunca vai saber que o baptismo que apôs sobre as vossas vidas, será para sempre a arena de grandes peças de teatro, porque, se um dia – o que é pouco provável, pois já partistes há séculos e jamais voltareis – aparecerdes, os dois, num qualquer lugar e dizerdes que vos chamais João Sem Vontade e Francisco Pega Merda, o mestre-de-cerimónias vai mandar parar tudo para vos dar prioridade. Os vossos nomes são uma festa, celebrada já nesses tempos em que éreis insultados, humilhados, aviltados, montados como bestas de carga, conduzidos como animais de abate, roubados em todos os celeiros do solo e subsolo e rios e mares e oceanos da vossa terra.

Mas hoje escrevo-vos esta carta, seguindo sempre os meus caminhos tortos, onde estou constantemente a quebrar os ritos. Escrevo-vos com a minha alma instalada na terra que vos viu nascer, ou perto da terra que vos pariu. E isso não me impede de aplaudir o sentido dos vossos nomes. Rio-me, nesta ovação, leito abaixo, até cair de cangalhas. Quero rir-me mais quando voltar a Tete na próxima semana, e reencontrar as amizades que já comecei a construir. Reencontrar os faróis que já começam a indicar-me onde é que devo instalar as minhas âncoras.Pois é, João Sem Vontade e Francisco Pega Merda!

O maltrapilho do tuga que vos deu esses nomes é mesmo um estúpido. Misturou nomes de santos com bosta abandonada por bois doentes e esquálidos, nas lagoas que se escarrapacham nos braços do vosso grande rio. João e Francisco são nomes sagrados, mas, Sem Vontade e Pega Merda, esses são excrementos de hiena! A sorte é que alguns dos vossos antepassados despertaram-me em Nhamabira, lá em cima, de onde se abre aquele esplendor infinito do Zambeze.

Disseram-me, sussurrando, como o fazem todos os sagazes, para vos escrever esta carta e pedir-vos para desprezardes o pulha do tuga que tentou inculcar em vós a ignomínia. Já passa muito tempo depois desse esterco todo, e vós nunca vos esquecestes disso, porque um coração como o vosso, experimentado pelos crocodilos e pelos hipopótamos e pelas canoas que navegam para a jusante e para a montante desta cidade que sempre vos pertenceu, nunca esquece. Continuareis a ser arautos, e os arautos sempre tiveram uma memória cheia de sangue, como os elefantes.

O vosso coração também parecese com o rio Zambeze: não esquece o seu caminho. E o que mais me espanta é que tendes a grande virtude de vos rirdes dos vossos próprios nomes, e isso significa que nunca perdestes a verticalidade. Ainda hoje sois capazes de abrir o peito como o fez o Mafemane, quando Ualalapi largou a sua zagaia para matar um homem com princípios. Éreis capazes de voltar para as ilhotas e para as margens e para dentro do próprio rio e impedirdes que os monstros das águas fizessem mal às pessoas. Aliás, será por isso que os vossos antepassados me mandaram escrever esta carta de nada, nascida em Nhamabira, este local privilegiado que a própria cidade de Tete parece esquecer.

É isso: nunca reparastes em mim, mesmo quando passo por cima desta ponte que dança ao ritmo dos reis da estrada, fazendo-nos dançar também. Mas eu não me importo que não repareis em mim, apesar de que isso constituiria uma honra, nestes dias em que tudo parece andar mais depressa do que nos vossos tempos. Pois é, João Sem Vontade e Francisco Pega Merda: só vos queria saudar.

Aquele abraço!

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