Em Maputo, as publicações de livros ocorrem em eventos badalados. Kulimando Saberes – a nova obra de Calane da Silva – não foi excepção. No entanto, tivemos tempo para saber o seguinte…
Publicar Kulimando Saberes aqui é simbólico. Com que sentimento retorna ao Centro Cultural Brasil-Moçambique, dois anos depois de ‘abdicar’ da sua direcção?
É um sentimento muito profundo, uma vez que quando nós habitamos uma casa em que trabalhamos, as nossas energias ficam impregnadas nas suas paredes. Por isso, o meu retorno configura a retomada da energia que se cimentou ao longo dos anos, a trabalhar, a gerar acontecimentos, a realizar cursos e eventos culturais para que, de facto, cada um de nós e todos aqueles que habitavam esta casa conseguissem levar consigo algo melhor, transformando as suas vidas. Foi isso o que aconteceu.
Temos um sentimento profundo de alegria, uma expressão de vontade para que todo o trabalho cultural desenvolvido aqui perdure sob a orientação de outros dirigentes que vierem.
Como é que tem sido o seu dia-a-dia em Inhambane?
Em Inhambane há um problema grave da violência doméstica, motivado pela acção dos curandeiros que dizem que quem está a originar a maldade são a mãe, a sogra e a tia. Por isso, os homens espancam as mulheres. Em resultado disso, o edil pediu-me um apoio para trabalhar no sentido de suavizar esses problemas. Mas também, já iniciámos um trabalho interessante, num infantário público, com crianças deficientes onde prestamos o nosso apoio.
Formámos a Liga dos Escuteiros que está a funcionar. Também temos lá o grupo espiritual Arco-Íris, no qual fazemos a fitoterapia e a ciência espiritual. Continuo a realizar palestras não só de natureza académica como também sobre a espiritualidade para os jovens em Maxixe.
Por essas razões, a minha experiência tem sido fantástica apesar de que em Inhambane, quando comparado com Maputo, o ritmo de trabalho diminuiu bastante. Aqui eu estava envolvido em várias sessões culturais, dirigindo o centro, dando aulas nas universidades. Então, tudo isso constituía uma labuta intensa que não se adequava muito ao facto de eu ser diabético porque me causava stress.
Nunca o vimos cabisbaixo. Está sempre motivado e empenhado. Qual tem sido a sua fonte de inspiração?
É Deus. É o Criador Quântico que habita em cada um de nós. O problema é que nós temos medo de assumir que somos seres divinos. Quando nos libertamos do medo, sentimos que há uma energia que transcende, que é imanente, e não nos cansamos porque essa força, essa energia maravilhosa, brota em cada momento. Como vê eu estou, aparentemente, cansado mas estou a raciocinar intelectualmente – com os meus quase 70 anos – e sou capaz de falar muito mais. Então isso significa que temos de fazer um exercício constante para sabermos quem nós somos. Para que essa energia não morra dentro de nós. Para que possamos irradiar energias positivas influenciando, nesse sentido, tudo e todos os que estiverem em nosso redor para que se transformem.
Desta vez, Calane da Silva, Paulina Chiziane e Ungulani Ba Ka Khosa decidiram publicar as suas novas obras, ao mesmo tempo. Que comentários faz sobre esses eventos?
De certa maneira, estas coincidências não são casuais porque estes três escritores, amigos, apesar de estarem distante, sob o ponto de vista espiritual estão muito próximos. As obras, recentemente, publicadas são um sucesso na cidade. Então, isso significa que a nossa literatura – quer a artística, quer académica – continua forte, pujante e actuante. O nosso país está a crescer.
Muitas vezes fico preocupado quando oiço vozes negativas que dizem que não temos literatura. O que temos, então? Por exemplo, agora estou em Maxixe onde descobri um grande livro de poesia e de contos. A mesma já foi enviada para a editora. Moçambique não é só a cidade de Maputo. Há neste país uma força energética literária de competência textual que se está a manifestar em todos os sentidos. O que temos de fazer é dar apoios continuamente.
Vasculhando-se as páginas do Kulimando Saberes encontra-se uma preocupação pontual em relação à qualidade do ensino, muito em particular em relação à dicotomia classificação e/ou avaliação. Como é que esses factores geram impacto na tão almejada qualidade de ensino?
É uma questão muito importante, em todos os sentidos, porque se o professor não estiver bem formado, não tiver todas as condições materiais e humanas criadas, possuindo uma turma de mais 100 alunos, como é que ele pode trabalhar eficazmente no ensino? Como é que ele vai avaliar os estudantes? Só pode classificá-los porque são muitos. Portanto, há aqui uma lacuna muito grande.
Nós não devemos ter medo de tomar posições – como se fez noutros países – para sabermos o que devemos fazer para melhorar a qualidade de ensino. Temos de trabalhar no sentido de ter todo o povo a saber ler, escrever e contar. Mas só entra para o ensino primário quem escreve, fala e conta melhor. E devemos produzir exames muito difíceis a partir da escola primária. Os que não conseguirem superar as barreiras serão alfaiates ou pedreiros. Ou seja, irão trabalhar nas profissões que lhes são mais adequadas intelectual e tecnicamente.
No ensino secundário devia-se fazer o mesmo e ninguém ficaria atrás. Mas os mais capazes é que devem avançar para que possam ser o nosso comboio. Temos investido pouco na educação por isso, hoje, encontramos gente com níveis de conhecimento extremamente baixos, mas estão nas universidades. Eu não estou contra isso, mas estou contra o facto de não haver a qualidade de ensino para que, através desses nossos técnicos bem formados, o país possa avançar.
Ou seja, não quero ter 100 engenheiros a destruir prédios e pontes. Mas preciso de 10 que construam pontes maravilhosas e eternas. Eu não quero 100 médicos que matem doentes, mas preciso de 10 que curem 100 doentes. É em relação a isso que essa concepção deve mudar, radicalmente. Temos de criar um novo paradigma de qualidade para que todos possamos caminhar no saber, mas dando espaço àqueles que são mais capazes para nos guiarem.
Que comentário faz em relação à fasquia que, no Orçamento do Estado, se dá à Cultura?
Temos um problema grave. É que em todo o mundo, e o nosso país não é excepção, os governantes olham para a Cultura como sendo a parte terciária dos orçamentos – o que devia ser o contrário. Os países que investiram 1.5 porcento do seu orçamento na Ciência e na Cultura, hoje, tornaram-se superpotências.
Por exemplo, os estudantes que foram enviados para o estrangeiro a fim de estudar sobre a extracção de gás e petróleo – nos tempos de Samora Machel, quando nós éramos muito mais pobres – são eles que quando retornaram fizeram os primeiros furos de Temane. Infelizmente, hoje, nenhuma outra pessoa está formada nessas áreas. Quem é que irá dirigir os acordos com os megaprojectos que existem no país? Não temos ninguém porque – por nossa culpa e responsabilidade – negligenciamos a formação técnica. Trata-se de uma área em que sabíamos que tínhamos recursos. Samora tinha essa consciência; por isso, já naquele época, enviámos pessoas para se formarem noutros países.
Não podemos parar de formar o Homem. Temos de criar perspectivas sobre aquilo que queremos de nós nos próximos 10 ou 20 anos, num aspecto global e sobretudo primando pela qualidade.
E esse fraco investimento tem impacto na produção cultural?
Certamente, mas como em tudo há sempre uma excepção à regra. Por exemplo, em Inhambane há uma escola – que recebe o mesmo orçamento que as outras mas é – limpíssima. Não possui nenhum risco na parede, há árvores para sombra plantadas pelos próprios alunos. Então, isso quer dizer que mais do que directores precisamos de líderes nas escolas e professores que comandam as pessoas, gerando a transformação.