Numa altura em que se fala tanto da igualdade de género e da valorização da mulher, Júlia Cebola serve de exemplo. Natural do distrito de Monapo, província de Nampula, é hoje uma das poucas, senão a única mulher condutora de máquinas pesadas naquela província.
A sua história começa no longínquo ano de 1992, quando foi admitida como servente numa empresa de manutenção de estradas e pontes. Foi o seu primeiro emprego. No ano seguinte, 1993, a empresa na qual trabalhava contratou um coordenador brasileiro, o qual perguntou se das mulheres que lá trabalhavam alguma delas sabia andar de bicicleta.
Todas responderam que sim e, como teste, o coordenador propôs que elas fossem tirar água num poço que distava mais de cinco quilómetros. Júlia foi a única que voltou com o precioso líquido sem ter descido da bicicleta, excepto quando foi para pôr a água no recipiente.
Só que elas não sabiam que estavam a ser filmadas. Como prémio, Júlia passou a ter aulas de condução de tractores, que duraram uma semana. Daí em diante, ela começou a carregar areia e água para a construção de estradas.
Embora não possuísse carta de condução, Júlia trabalhou por muitos anos e em quase todos os distritos. “Já trabalhei em Mecubúri, Nampula-Rapale, Murrupula, Moma, Érati, Meconta, Mogovolas, Angoche e Ribaué. A vantagem é que eu era a única mulher a trabalhar com tractores e máquinas pesadas”.
O infortúnio bateu-lhe à porta quando o seu superior hierárquico ordenou que ela ensinasse a irmã a conduzir. Depois de um tempo, o mesmo superior hierárquico pediu que ela instruísse a sobrinha, ao que ela (Júlia) recusou, uma vez que se tratava de uma ordem expressa oralmente.
A sua atitude valeu-lhe uma transferência para a cidade de Nampula. Lá, foi afecta ao Departamento de Equipamento nas ofi cinas da Empresa de Construção e Manutenção de Estradas e Pontes (ECMEP), onde adquiriu conhecimentos ligados à mecânica e máquinas pesadas. Depois de quatro meses recebeu um tractor, com o qual passou a trabalhar no distrito de Meconta.
A bendita carta
Só no ano 2000, com o apoio de uma senhora ligada ao Secretariado Nacional do Género, é que Júlia pôde tirar a sua carta de condução, o que permitiu que ela já não conduzisse ilegalmente. “A tal senhora, de nome Teresinha, estava de visita à empresa e tinha como objectivo avaliar a situação da mulher. Constatou que eu conduzia máquinas pesadas ilegalmente. Depois da visita, ela enviou 14 mil meticais para tirar a carta de condução”.
Depois de tirar a carta de condução, Júlia continuou a trabalhar nos distritos como condutora de máquinas pesadas até à falência da ECMEP. Diz não ter sido fácil “cair” no desemprego, pois teve de regressar à sua terra natal, distrito de Rapale, onde começou a dedicar-se à agricultura para poder sustentar os filhos. Mas foi por pouco tempo. A fama de que ela gozava e o profissionalismo fizeram com que fosse solicitada por várias empresas, tendo optado pelo Conselho Municipal da Cidade de Nampula, em Fevereiro do ano passado.
A experiência no município
Trabalhou no município como condutora de máquinas pesadas (pá niveladora, tractor, camião de remoção de lixo e de transporte de material de construção de estradas). “Carregava areia, alcatrão e cimento para o fabrico de pavê e marcos”.
O vínculo contratual com o município terminou este ano e teve de voltar à sua antiga empresa, apesar de esta estar a atravessar um mau momento.
“Trabalhei no município durante nove meses e nunca faltei. Quando passasse pela estrada, as pessoas ficavam preocupadas, outras com inveja. Alguns até gostavam. As únicas que ofendem são as mulheres e jovens. Chamam-me nomes, ora de homem, ora de maricas. Isso magoa-me, e muito”.
Até que nível estudou?
Fiz a quarta classe do antigo sistema e, no ano passado, concluí a sétima classe na Escola Comunitária de São João de Deus. Preferi voltar aos bancos da escola, apesar das responsabilidades que tenho.
O que gostava de fazer quando era criança?
Gostava de brincar com o barro, fazia carrinhos e oferecia aos meus amigos. Gosto também de dançar, sentir a adrenalina da música, quer seja tradicional, quer seja convencional. Sempre que oiço uma música da qual eu gosto, levanto-me e ponho-me a dançar.
Foi sempre seu sonho conduzir máquinas pesadas?
Não, o meu sonho era ser enfermeira.
Porque não o realizou?
Por falta de condições. O meu pai era funcionário dos CFM e não tinha como custear os meus estudos. Ainda assim, eu alimentava alguma esperança mas quando ele morreu as coisas pioraram. Quando visse uma mulher com aquela bata branca sentia inveja.
E decidiu dedicar-se a essa pro fissão (de condutora)?
Sim, mas não me arrependo. Tenho orgulho de ser condutora.
Quando é começou a namorar?
Naquela altura, namorar não era coisa banal. Era preciso oficializar. Já não me lembro de quando é que comecei a namorar, mas foi com o pai dos meus quatro filhos, dois rapazes e duas meninas. Separámo-nos há dez anos por razões que não importa mencionar.
E hoje, vive maritalmente ou continua solteira?
Depois da separação, conheci um homem com quem construí uma casa de alvenaria. Só que ele começou a criar problemas e a maltratar os meus filhos. Com o andar do tempo, expulsou-me da casa que construímos, mas isso nunca me incomodou. Construí a minha própria casa e hoje é ele que pede para voltar, mas eu não aceito, sou uma mulher com garras e orgulho próprio.
Conheci outro homem mas ele pediu a separação porque se sentia inferiorizado por viver com uma mulher que trabalha com máquinas pesadas, algo raro no nosso país. Os amigos chamavam-no “matreco”.
Sente que a sociedade valoriza o seu trabalho?
Sim. Por exemplo, em 2008, fui convidada pelo governador de Niassa para fazer parte do desfile alusivo ao Dia dos Trabalhadores. Fui e voltei de avião. Recebi vários presentes e as mulheres incentivaram-me a continuar com o meu trabalho.
O que gosta de fazer nos tempos livres?
Nunca fiquei trinta minutos sentada. Sempre gostei de trabalhar, fazer trabalhos domésticos, cozinhar, lavar a roupa, varrer a casa. Aos fins-de-semana vou à machamba, no distrito de Rapale. Gosto também de bordar. O que a deixa irritada? Homens machistas, daqueles que não dão valor à mulher.
De que é que não gosta?
Pintar os lábios. Não gosto de pessoas invejosas, intriguistas e fofoqueiras.
Em relação ao vestuário, qual é o tipo de roupa que gosta de vestir?
Gosto de amarrar a capulana, mesmo quando estou a conduzir.
Qual é o seu prato favorito?
Matapa. Mas não gosto de pôr muitos ingredientes nos pratos que preparo.
O que sonha para os seus lhos?
Gostava que uma das meninas fosse professora e a outra jornalista ou engenheira agrónoma. Elas gostam de estudar e isso enche-me de orgulho.
Que apelo lança às outras mulheres?
Devem lutar para serem donas do seu destino, devem-se autopromover e não deixar que o homem o faça por elas. Mas atenção, lutar não significa perder o respeito para com o marido mas sim defender com garras os seus ideais, rumo à apreciação dos nossos valores.
Em relação aos homens, deixem de usar a mulher como instrumento de reprodução ou como objecto. Ela tem valores e qualidades. É uma pedra por lapidar. Descubram os valores e sentir-se-ão orgulhosos.