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Juiz João Guilherme absolve Castel-Branco e Fernando Mbanze e reforça os alicerces da Democracia em Moçambique

Juiz João Guilherme absolve Castel-Branco e Fernando Mbanze e reforça os alicerces da Democracia em Moçambique

Celebrou-se a 15 de Setembro o Dia Internacional da Democracia; porém, em Moçambique a Democracia vai passar a ser celebrada a 16 de Setembro, o dia em que o Juiz João Guilherme não só absolveu o académico Carlos Nuno Castel-Branco e o jornalista Fernando Mbanze, do crime contra a Segurança do Estado e abuso da Liberdade de Imprensa, respectivamente, mas também esclareceu aos moçambicanos e principalmente a quem nos governa, e a todos os titulares de cargos públicos, que “para grandes responsabilidades públicas, principalmente as derivadas de cargos políticos, grande exposição à crítica pública, ainda que desgastante”, e que os “críticos que são capital imprescindível numa sociedade democrática, são a chamada massa crítica”, porque vivemos num Estado de Direito Democrático onde os Tribunais não são guardiões da lei do silêncio.

O Juiz Presidente, e os seus pares, do Tribunal Judicial do Distrito de Kampfumo, na cidade de Maputo, bem poderiam ter julgado improcedentes as acusações devido a algumas deficiências da acusação do Ministério Público, representado pela Procuradora Sheila Matavele, que não clarificou, por exemplo, que partes do post feito por Castel-Branco na rede social Facebook, e posteriormente publicado pela imprensa, é que integram os crimes contra a Segurança do Estado, não conseguiu demonstrar de que forma o texto pôs em causa a honra e consideração devidas ao Presidente da República, Armando Emílio Guebuza, nem conseguiu a separar o órgão de soberania injuriado do cidadão difamado. O Tribunal poderia também ter amnistiado o professor Carlos Nuno Castel-Branco, e por arrastamento também o jornalista e editor do Medifax, à luz da Lei da Amnistia de 12 de Agosto de 2014, mas optou por fortalecer e criar jurisprudência e dar uma lição de democracia, sem precedentes em Moçambique.

Durante a lição, presenciada por uma sala cheias de jornalistas, amigos dos réus, activistas e cidadãos anónimos, o Juiz João Guilherme pegou em passagens do post intitulado “Carta ao Presidente da República” e explicou de que forma eles não representam crime nenhum.

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“Uma simples sentença judicial que derrubaria num só voto os alicerces de um Estado de Direito Democrático”

“Senhor Presidente, você está fora de controlo”, desta forma inicia o post escrito em Novembro de 2012 por Carlos Nuno Castel-Branco.

“Dizer publicamente, como disse o réu, que o Presidente da República estava fora de controlo num Estado de Direito Democrático onde a Liberdade de Expressão é constitucionalmente reconhecida, como acontece na República de Moçambique, por mais desconforto que possa causar a quem não esteja de acordo com tal opinião não constitui infracção penal alguma por ser uma simples crítica, das mais triviais e leves que se podiam ouvir num sistema democrático que autoriza e vive da Liberdade de ideias”, leccionou o Juiz que acrescentou que esta crítica enquadra-se “no âmbito e limites restritos do direito de expressar livremente o pensamento. É o mínimo de Liberdade que deve permitir a um cidadão, no âmbito de uma análise política e no debate democrático de ideias, quando analisa a governação do seu país concluindo que na sua óptica pela má condução dos destinos da sua pátria, trata-se apenas de uma crítica sobre a forma como um determinado Governo, dirigido por um Presidente da República, governa um país cuja proibição, sancionada por uma sentença judicial, colocaria os Tribunais na lista das instituições mais antidemocráticas que se poderia alguma vez fazer. Visto que tal não poderia deixar de ser verdade senão como proibição absoluta de emissão de opinião pelo cidadão quando o visado fosse o Presidente da República”.

O Juiz João Guilherme ressalvou ainda que “se se desse por procedente a acusação nesta parcela não poderia o Tribunal deixar de estar na indigna posição de legislador constituinte negativo, conseguindo isso a partir de uma simples sentença judicial que derrubaria num só voto os alicerces de um Estado de Direito Democrático, o sonho milenar e a conquista histórica de um povo, este que passaria agora não a atender à Lei mas aos Tribunais este ganharia uma espécie de estatuto público de guardião da lei do silêncio. Assim, sendo por excelência tarefa dos tribunais concretização, isto é efectivação da Constituição por via da aplicação do Direito aos casos concretos, condenação de um cidadão pelo simples facto de dizer que o Presidente da República e os seu Governo estariam fora do controlo colocaria os tribunais também na posição de, além de garantirem a normatividade da Constituição, função por excelência dos Tribunais, transformarem-na em mero objecto de cosmética jurídica, numa mera declaração de princípios ou intenções políticas ou em coisa dispensável, ou, numa só palavra, numa Constituição que de normativa passaria a ser puramente semântica que, como se sabe dos ensinamentos do Direito Constitucional de Carl Lewis, esta modalidade da Constituição se orienta única e exclusivamente a legitimar o status quo político”.

“Para grandes responsabilidades públicas, grande exposição à crítica pública”

Relativamente à passagem onde o académico e economista moçambicano critica o antigo Presidente Guebuza por ter “gasto um mandato inteiro a inventar insultos para quem quer que seja que tenha ideias sobre os problemas nacionais”, o Tribunal considerou que “está aqui uma outra referência que à luz do Direito Fundamental de Liberdade de Expressão não constitui crime nem de difamação, calúnia e muito menos de injúria”.

“Lido o texto com mais amplitude verifica-se que o autor refere a insulto do Presidente para quem tivesse ideias sobre problemas nacionais em vez de criar oportunidades para beneficiar da experiência e conhecimentos dessas pessoas, ora lido o texto com esta amplitude conclui-se que sem quaisquer dúvidas que a leitura que o autor do texto, o réu, faz sobre a forma como Presidente da República governa o país e a forma como pretensamente tratava os seus detractores, isso em discursos públicos ou publicados, é nada mais do que o Presidente da República de então governava com exclusão, e excluía exactamente aqueles que por alguma razão até estavam melhor colocados para discutir e solucionar questões de grande interesse nacional. Com este sentido não se pode surpreender, não sem prejuízo para a razoabilidade, para a objectividade e coerência, qualquer infracção penal na actuação do réu já que tal referência não passa de mera crítica. Para uma figura como o Presidente da República, principalmente para o nosso que carrega ou acumula grandes responsabilidades constitucionais, se há uma exigência imposta a todos para que a respeitem enquanto Magistrado Supremo há uma correlativa maior margem de permissão a favor dos cidadãos para com o âmbito do exercício do livre direito de expressar livremente o pensamento, criticar a figura em causa por factos inerentes ao exercício dessa função ou factos praticados por conta do exercício dessas funções sendo permitido, dependendo das circunstâncias, o exagero. O que significa que para grandes responsabilidades públicas, principalmente as derivadas de cargos políticos, grande exposição à crítica pública, ainda que desgastante”, explica o Juiz no acórdão.

“Opinião perfeitamente aceitável num país democrático”

Analisando o parágrafo onde Castel-Branco critica o antigo Chefe de Estado, de “querer fascizar o país, mas não se esqueça de que a sua imagem e a do seu partido estão muito descredibilizadas – por causa de si e do seu exército de lambe-botas. E essa credibilidade não se recupera com palavras e com mortos. Só se pode recuperar com a paz e a justiça social. O que prefere, tornar-se num fascista desprezível e, a longo prazo, vencido?”, os Juízes da 4ª secção do Tribunal Judicial do Distrito de Kampfumo entenderam que é uma “opinião perfeitamente aceitável num país democrático”.

“Caracterizar-se por fascista um Governo, e em especial o do então Presidente da República, Armando Emílio Guebuza, pode até ser exagero, porque tudo depende da opinião crítica de cada um, mas não é crime. Porque equivale apenas a dizer que era um Governo mau, que era um Governo que não servia os interesses para os quais existia ou para os quais lhe foi outorgados o mandato popular”.

Sobre a crítica ao facto do ex-Presidente Armando Guebuza se haver rodeado de “lambe-botas que lhe mentem todos os dias, inventam relatórios falsos e o assessoram com premissas falsas”, o Juiz começou por definir o termo usado pelo professor e concluiu que “sendo polissémica a palavra lambe-botas” o Tribunal não poderia escolher, já que a acusação não o especificou, entre vários significados aquele que é o ofensivo ao antigo Chefe de Estado de Moçambique e por essa via incriminar o réu.

“Do dicionário da língua portuguesa se retira que lambe-botas é bajulador, e por isso aquele que bajula outrem, pessoa subserviente, lacaio, como sinónimos de destaques entre outros salientam-se os adjectivos escova-botas e puxa-sacos. (…) É verdade que considerado o acto material o gesto de lamber uma bota, independentemente de quem a tenha calçado, se o pacato homem da rua, o Presidente da República ou qualquer outra pessoa, independentemente também de estarem ou não limpas, as botas lambidas ou por lamber, bem assim engraxadas ou não, a imputação de tal facto, o de que assessores lambem as botas do Presidente da República, ganha feição horripilante por nojento o acto em si mesmo e por essa razão não dignificar a ninguém a sua prática, assim a imputação de facto pode deixar qualquer que seja o visado muitíssimo irritado, incomodado ou mal- humorado, mas não poder ser visto e percebido senão como uma crítica severa, que recorre a um discurso prenhe de sátira ou de exagero, que recorre a figuras de estilo ou palavras pesadas e acintosas, mas não pode significar senão no contexto em que foi feita a imputação que o réu pretendeu transmitir a ideia veemente de que assessores do Presidente da República, e muitos outros que gravitavam à sua volta, e que deveriam auxiliar no cumprimento do seu mandato eram incompetentes, ou não eram pessoas idóneas e só se preocupavam em agradar”, explicou o Juiz João Guilherme.

No que diz respeito à crítica feita à equipa de “assessores estrangeiros ligados ao grande capital multinacional ao invés de ouvir as vozes nacionais ligadas aos que trabalham honestamente”, o Tribunal reconheceu mérito a intervenção acutilante de Carlos Nuno Castel-Branco.

“Se é óbvio que o Presidente da República tem a liberdade de se assessorar como melhor lhe convier, para o cumprimento do seu mandato popular, é próprio de um cidadão num país democrático mas é mais ainda das funções próprias de um académico, de um professor universitário sério, que eleve o tom quando se aperceba de que o país está a caminhar para um rumo errado, ainda que tal caminhar para o abismo, para outros círculos de opinião, se assuma como mero exagero de quem o propala. Não há aqui mais nada senão uma opinião crítica, talvez azeda mas insusceptível de sindicância judicial por não ter a virtualidade de agravar, não pelo menos fora dos limites da lei, a honra e a consideração devidas ao Presidente da República enquanto órgão de soberania”, refere o acórdão que abre um positivo precedente na jurisprudência moçambicana.

“É expectável que ao cidadão seja reconhecido o direito de questionar e de criticar principalmente o Presidente da República”

“O Presidente da República, discursando nessa qualidade, e mesmo em outra, está obviamente sob os holofotes da crítica e dos seus detractores, que em sociedades democráticas, como é e deve continuar a ser a nossa, os tem e sempre os terá com certeza. Por essa razão deve estar preparado para que o seu discurso seja recebido de forma diferente pelos seus destinatários e mereça tratamento diverso do que ele próprio espera e reserva, isso de acordo com a agenda de cada receptor perante um cenário de confronto de ideias. É expectável, por isso, que os seus críticos explorem todas e quaisquer nuances que nesses discursos existam, da mesma forma que os seus seguidores o podem ovacionar com toda a naturalidade sendo-lhes permitido, como se permite aos opositores, que até se quedem pelo exagero à real exequibilidade ou mérito desses discursos, é a democracia que assim o permite”, argumentou o Juiz João Guilherme relativamente à passagem da carta onde Castel-Branco recordava os insultos do antigo Chefe de Estado aos cidadãos que apontavam problemas e soluções e também os chamava pobres, de serem preguiçosos e de não quererem deixar de ser pobres.

O académico também criticou, nos seu post na rede social Facebook, “a nomeação de um criminoso condenado a prisão maior para comandante de uma das principais forças policiais no centro do país”, pelo então Presidente de Moçambique.

O Tribunal entendeu que este era “um dos factos que importava que a acusação perquirisse sobre ele, no sentido de ter verificado se tal facto, nomeação de pessoa condenada para um lugar de destaque aconteceu ou não, claro se o Ministério Público tivesse dúvida alguma, mas é do domínio público que a imprensa escrita de então criticou de forma severa a aparição de um comandante das forças especiais no teatro das operações das chamadas hostilidades políticas na região centro do país, um comandante que, como é também do conhecimento público, veiculado pela mesma imprensa, foi condenado em pena de prisão maior. Ora sendo o Presidente da República o garante da Constituição, o Magistrado mais alto da Nação como é usual dizer-se, e Comandante das Forças de Defesa e Segurança, e sabendo-se que em termos legais só a pronuncia por uma infracção a que cabe pena maior tem implicações a nível do estatuto ou qualidade do funcionário do Estado, é expectável que ao cidadão, qualquer que seja, seja reconhecido o direito de questionar e de criticar principalmente o Presidente da República por permitir que, quer o faça directamente ou indirectamente, situações como estas tenham lugar, quando não se saiba publicamente que tenha tido o caso, da condenação desse servidor público, desfecho diverso do que foi ampla e publicamente veiculado. Não passando de uma crítica legítima não há como incriminar o réu por qualquer infracção, pelo contrário, em termos de princípio, principalmente do ponto de vista político mas sobretudo democrático, era razoável que o Governo ou se quiser o Estado esclarecesse o caso quando a imprensa o ventilou e os críticos entraram em acção, pelo simples facto de que numa democracia é o mínimo que se espera de um Governo perante a exigência dos governados, embora da falta de esclarecimento não possam derivar senão consequências meramente políticas, pelo menos enquanto não intervier qualquer entidade para repor a legalidade que possa estar em causa”.

“Questionar como o Presidente da República, enquanto governante, administra a coisa pública e sindicar sobre se sendo empresário na sua vida privada se consegue como Presidente da República manter-se suficientemente equidistante no exercício da sua magistratura em relação a interesses pessoais”, é neste contexto que o Juiz João Guilherme entendeu a crítica de Castel-Branco. “Quem se apropria de toda a riqueza e ao povo maravilhoso oferece discursos e desse maravilhoso povo quer retirar (ou gerir, como o senhor diz) qualquer expectativa? Quem só se preocupa com os recursos que estão em baixo do solo, mandando passear as pessoas, os problemas e as opções de vida construídas em cima desse solo? Quem privatiza os benefícios económicos e financeiros dos grandes projectos, e depois mente dizendo que ainda não existem?”

“Mais uma alusão sem virtualidade para configurar crime algum”

Ademais, o Juiz clarificou que esta crítica “Moçambique, e por aquilo que temos vindo a saber cada dia, é rico demais para ser demasiadamente séria uma acusação segunda a qual um cidadão está a apropriar-se de toda a riqueza, ainda que o cidadão em causa seja o Presidente da República. Dado o carácter genérico e notoriamente exagerado que caracteriza tal informação pode incomodar os ouvidos e consciência individual mais sensíveis, soa claramente, e é apenas e não pode passar disso, uma crítica que pretende passar a ideia de que há uma mescla entre interesse público e privado, favorecida pelo Presidente da República em proveito próprio o que nesta atmosfera não constitui crime nenhum, ainda que possa não corresponder, quer inteira, quer parcialmente, a verdade”.

Sobre a crítica de divisão dos moçambicanos em termos raciais e étnicos, regionais e tribais, religiosos e políticos o Tribunal recordou que os meios de comunicação na altura veicularam este assunto, propalado por alguns sectores do partido Frelimo, e por isso entendeu ser “mais uma alusão sem virtualidade para configurar crime algum, pelo menos se não restringir de forma assustadora as liberdades fundamentais dos cidadãos. Esta referência não passa de mais uma crítica ao Presidente da República, não disse nada o réu senão, em seu ponto de vista, promovia a discriminação com base em factores diversos criticando, porque, como se sabe, sendo Presidente da República o garante da Constituição esta proíbe a discriminação qualquer que seja o factor”.

Na carta, publicada inicialmente na rede social Facebook e depois veiculada por alguma imprensa escrita, Castel-Branco questionou os ideais de Armando Guebuza, que conheceu nos primórdios da revolução em Moçambique. “Você foi um combatente da luta de libertação nacional e um poeta do combate libertador, mas hoje não posso ter a certeza que liberdade e justiça tenham sido os seus objectivos nessa luta heróica”, escreveu o académico.

“Trata-se de uma crítica que apesar de poder constranger ou deixar bastante afectado o visado, sob o ponto de vista emocional, quer como Presidente da República e principalmente como pessoa, mas principalmente ainda como combatente da luta de libertação nacional com lugar reservado na nossa história, não extrapola os limites da Liberdade de Expressão e por isso não preenche qualquer tipo legal de crime, por mais desgastante que ela possa ser”, argumentou o Juiz que voltou a enfatizar que “todo e qualquer cidadão é livre de pensar sobre se uma determinada pessoa, e ainda que ocupe o lugar de Presidente da República ou qualquer outro cargo de destaque no Governo, no poder legislativo ou judicial, é ou não digna, é ou não idónea de ocupar esse lugar. É livre o cidadão de referir-se publicamente sobre a idoneidade ou não do Presidente da República, representante do povo, apelando a todo povo… embora nem sempre por palavras mas depositando o seu voto na urna e escolhendo entre vários candidatos concorrentes a esse lugar. Expressando-se publicamente por palavras, uma das formas de divulgar o pensamento, o cidadão o faz dentro dos limites do direito à Liberdade de Expressão, portanto dizer que o Presidente da República já não professa os mesmos valores que defendia no período revolucionário para a independência do país e que por essa razão é indigno de representar o seu povo e ainda que é duvidoso”.

No que respeita à comparação feita do ex-Presidente de Moçambique, nesta passagem, a “Hitler e Mussolini, Salazar e Franco, Pinochet e outros ditadores militares latino-americanos, Mobutu e outros ditadores africanos foram instalados no poder, defendidos pelo grande capital enquanto serviam os interesses desse grande capital, e no fim caíram”, o Tribunal explicou que esta comparação “não equivale necessariamente a apodá-lo de sanguinário, ou carniceiro” como historicamente são conhecidos estas figuras, e recomendou “que a bem do debate democrático se estendam os limites da Liberdade de Expressão, que se permita o recurso a uma crítica mais avassaladora, restringindo-se por sua vez na base do critério da ponderação de bens e concordância prática a honorabilidade devida à figura do Presidente da República de modo a permitir que esse fique mais exposto à crítica como entidade colocada na boca da cena política e dadas as funções que exerce”.

“Sobre os patos nada mais é do que um adereço de ocasião”

Castel-Branco pediu na sua carta a saída do Presidente Guebuza, nos seguintes termos: “Reúna os seus patos e saia, saia enquanto ainda há portas abertas para sair e tempo para caminhar. Não tente lutar até ao fim. Isso só vai trazer tragédia, mortes e sofrimento para todos e, no fim, inevitavelmente, você e todos os outros belicistas, criminosos e aspirantes a fascistas, sejam de que partido forem, serão atirados para o caixote do lixo da história. Saia enquanto é tempo, e faça-o com dignidade.”

O Juiz João Guilherme começou por afirmar que não “tendo o Ministério Público fixado em que medida tal referência põe em causa a honra e consideração do Presidente da República vemos que o trecho acima resulta apenas que o autor do texto responsabiliza o Presidente da República pela situação conflituosa que vivia o país e o vê como um homem apoiado sobre armas e o convida a sair antes que arraste o país para o caos”.

“Sobre os patos nada mais é do que um adereço de ocasião, já que, como se sabe, a figura do Presidente da República, como bem o disse o réu em audiência de discussão de julgamento e é do domínio comum, sempre esteve associado, quer na imprensa quer nas mais triviais cavaqueiras, a este palmípede já que é recorrente dizer, como cidadão, que alguma vez já foi criador dessa espécie animal, embora não signifique que pessoalmente estejamos seguros sobre a veracidade dessa confissão. O que de qualquer modo não nos parece ser de nada ofensivo à dignidade de qualquer pessoa o ser-se criador de patos, mesmo porque se fosse indigno, a ser verdade que terá dito o cidadão Armando Emílio Guebuza que fora criador de patos, com certeza não o teria dito publicamente. Quanto aos patos que deve levar, obviamente que o réu tomando desse adereço pretende com recurso a figura de estilo recomendar que não só deixe o Presidente o lugar à disposição mas também que leve consigo todo o seu Governo, que o equipara aos patos do Presidente. O que embora à primeira vista possa parecer vexatório não o é no âmbito da crítica considerada no seu todo, e no contexto em que foi feita. O Governo é dependente do Presidente, cá entre nós tal como a criação é pertença do seu dono. Obviamente que não sendo os integrantes do Governo animais irracionais, e portanto criação alguma do Presidente da República nessa vertente, tal referência choca, aborrece, indigna mas só uma mente pouco sensível aos valores democráticos e ao debate de ideias num sistema democrático pode ver tal referência como infracção penal, o que não é o caso deste Tribunal. Pode haver ali uma impertinência ou grosseria, mas não há crime nenhum”.

“Haveria razões de sobra para a Liberdade de Imprensa se sobrepor ao respeito devido à imagem e consideração do Presidente da República”

Posto isto, o Tribunal concluiu que “o texto produzido e publicado pelo réu Carlos Nuno Castel-Branco, não obstante a linguagem escabrosa, áspera, contundente, azeda e severa que usa o articulista e o recurso frequente de caricatura linguística, comparação muitas vezes exageradas, traduz-se em simples texto de opinião sobre a actuação política do Presidente da República e do seu Governo o que, considerando o contexto político, económico e social em que o texto foi produzido e publicado por um lado, a qualidade o réu, um académico de intervenção marcadamente pública e notável no debate político sobre grandes questões de interesse nacional no campo da economia, por outro, mas também atendendo a qualidade de quem é no texto criticado, o Presidente da República e o seu Governo, torna o texto dentro dos limites da Liberdade de Expressão e de pensamento reconhecida aos cidadãos, porque nesse contexto Liberdade de Expressão para a sobrevivência da Democracia deve ser mais ampla do que a protecção da imagem ora em consideração devidas a um órgão de soberania como é o Presidente da República ou qualquer outro, incluindo titulares dos próprios Tribunais que têm o poder de decidir sobre os excessos no exercício dos direitos liberdade e garantias fundamentais”.

“Pode até pensar-se e dizer-se que tenha sido o réu pouco polido, que fosse desnecessário o recurso àquele tipo de linguagem, pode-se falar mesmo em grosseria, ou pode-se dizer que tenha sido o réu demasiadamente incisivo, impertinente ou provocador, mas a sua actuação, vista à luz do contexto global acima traçado, não passará obviamente disso e que o Direito Penal numa Democracia não pode preocupar-se com meras impertinências ou grosserias, principalmente quando resultam do debate democrático de ideias, sob pena de os Tribunais emperrarem a máquina democrática e dissuadirem os críticos de levarem a cabo a sua missão. Críticos que são capital imprescindível numa sociedade democrática, são a chamada massa crítica, o que nem por isso equivale a promover o insulto, o enxovalho ou vilipêndio contra pessoas ou entidades com existência legal”, acrescentou o Tribunal que também não verificou “crime algum na conduta do réu Fernando Mbanze pelo simples facto de que o conteúdo do texto publicado está contido dentro dos limites da Liberdade de Expressão”.

De acordo com o Juiz o “réu Fernando Mbanze, como jornalista que é, apenas se limitou a publicá-lo tal como já era do domínio público, quer por via das redes sociais, quer por via da Imprensa. Ainda que fosse havido como criminoso o conteúdo do texto, só um julgamento temerário decidiria pela condenação do réu, uma vez que haveria razões de sobra para a Liberdade de Imprensa se sobrepor ao respeito devido à imagem e consideração do Presidente da República, assim justificando o princípio democrático que autoriza o debate de ideias. Verdade, porém, é que nunca esteve em causa o respeito devido ao Presidente da República, não à luz da lei porque o artigo em causa, sendo cáustico, deve reconhecer-se, não se salda em injúria, em calúnia ou em difamação no conceito rigoroso que a lei dá a estas figuras jurídicas.”

“Decidi na esfera destes fundamentos, o colectivo de juízes desta secção decide, nos termos da Constituição da República e da Lei Penal, fá-lo em nome do povo da República de Moçambique julgar improcedente a acusação e absolver os réus Carlos Nuno Castel-Branco e Fernando Francisco Mbanze e os manda em paz e em liberdade por ser de Lei, registe-se e notifique-se. Distrito Municipal Kampfumo 16 de Setembro de 2015”, terminou desta forma a sua aula de Democracia o Juiz João Guilherme.

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