Vi-lhe na segunda-feira, dia 16, na principal avenida da cidade de Inhambane. Estava bem vestido, como um bom “maquelimane” que é, de calças pretas, camisa branca e uma gravata cuja cor não me ocorre. Tinha o pé direito sobre a caixa do engraxador, que polia o sapato preto de um dos maiores jogadores de futebol de Moçambique e de África. Por debaixo do braço prendia uma pasta preta e, enquanto lhe limpavam o calçado, conversava animadamente com o polidor.
Parei de longe a observar um homem que a história do nosso futebol nunca vai esquecer. É alto, corpo preservado, estiloso e, por causa destes atributos, Joaquim João não vai passar despercebido nas ruas da cidade e dos subúrbios por onde tem andado, como um anjo perdido no paraíso. Anda sempre aprumado, ou por dentro de um fato de treino luzidio, ou trajando calças e camisa limpas e bem engomadas.
Agora mudou. Pendurou o pé esquerdo na caixinha do engraxador, olhando ao mesmo tempo para o sapato pronto a fim de verificar se está de acordo com os seus padrões de aprumo. Sorriu, o que me levou a acreditar que estava satisfeito com o serviço. Ajeitou a pasta que trazia no regaço e as pessoas passavam por ele, umas cumprimentando-o, outras ignorando-o completamente, como Jesus Cristo também foi ignorado no seio da multidão em Israel, por algumas pessoas que falavam dele sem o conhecerem.
É manhã de segunda-feira, 16 de Dezembro, entre as 9.00 e as 10.00 horas, e eu estou à espera, a uma pequena distância, discretamente, que o astro da selecção nacional acabe de polir os sapatos para poder saudá-lo. Não demorou. Eis que desta vez tem os dois pés assentes no chão, ajeita as calças e procura a carteira no bolso traseiro de onde tira as moedas para efectuar o pagamento. Fui a tempo, mesmo estando um pouco afastado dali, de perceber que J. J. agradeceu cordialmente ao jovem que acabava de dar brilho aos seus sapatos.
Lá está ele, descendo por um dos passeios da Avenida da Independência em direcção ao edifício dos Caminhos-de-Ferro de Moçambique. Caminha tranquilo, seguro, em paz, parecendo um anjo perdido no paraíso. De vez em quando é saudado por este e aquele e o antigo capitão da selecção nacional responde com um sorriso, até que chegou perto de onde eu estava. Já nos conhecemos das longas jornadas da vida, por isso não precisamos de medir o quilate das palavras quando nos dirigimos um para o outro.
– Então, grande capitão, como vais?
– Olá, meu caro, graças a Deus está indo tudo bem.
– Já te refizeste do susto?
– Não completamente. Quando me lembro de que corria o risco de me amputarem a perna, o susto renova-se. Mas é a vida, meu caro, temos de estar preparados para o pior. Olhei para ele e não me arrependi de lhe ter recordado aquilo que Joaquim João gostaria de esquecer para sempre.
– Sabes J.J.
– Diz lá, meu irmão.
– Quando li nos jornais a história da tua perna que podia ser submetida aos malditos serrotes cirúrgicos, fartei-me de rir.
– Fartaste-te de te rir?
– Exactamente.
– Não sejas maldoso, meu irmão!
No fundo nós os dois sabíamos que aquelas palavras eram para alimentar a alma. O que eu queria, na verdade, era dizer algo cómico, nem que essa comicidade fosse trágica. E Joaquim percebeu. Com certeza.
Despedimo-nos, e ele continuou a sua marcha, ao encontro do trabalho. Voltei a olhar para ele e desceram sobre mim as várias imagens do Estádio da Machava, completamente cheio, com a voz de Saíde Omar aos microfones da Rádio Moçambique dizendo, “corta Joaquim João!”