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João, um rapaz de fibra

João

Ser pobre e estudar numa escola a 15 quilómetros pode-se considerar um acto de coragem e, quando se faz com uma paralisia que dificulta o movimento dos membros, diga-se, é um acto heróico. Apesar das condições físicas, que à partida o limitam, João Eduardo, um verdadeiro rapaz de fi bra, não desiste graças a uma força de vontade incrível que habita dentro de si.

No interior do bairro Machava Socimol, a uma hora da cidade de Maputo, João Eduardo partilha uma casa de blocos ainda não concluída com o pai, a mãe e quatro irmãos. Um mini bus da marca Toyota Hiace que outrora serviu de ganha-pão está avariado e estacionado no quintal, o que constituiu um duro golpe para o mísero orçamento familiar.

José Eduardo, pai do rapaz é desempregado e sobrevive dos biscates que surgem a conta- -gotas. “Sou um homem da estrada. Tenho uma vasta experiência como motorista, mas agora estou parado”, conta e acrescenta: “gostaria de trabalhar não só para facilitar o dia-a-dia do Joãozinho, como também para dar uma vida normal aos irmãos”.

O rapaz de 19 anos, aluno de contabilidade na Escola Comercial de Maputo é um optimista nato. A ironia é que João tem uma deficiência física que afecta o funcionamento dos seus membros superiores, inferiores e a boca.

Mas, a situação quase ganha dimensões de pormenor diante da energia e do entusiasmo com que fala, gesticula e se movimenta. Aquilo que seria para muitos um motivo para desistir dos duros combates da vida, tem sido encarado por ele como um obstáculo a ultrapassar.

Essa fibra e brilho no olhar surpreendem ainda mais quando se fica a saber que a tal pessoa paralítica e que fala com dificuldades, se tem saído muito bem como explicador de várias disciplinas até para alunos que frequentam uma classe superior à sua.

João não perde a pose, muito menos o sentido de humor e a capacidade de relativizar os problemas e de ver o lado positivo das coisas, a começar pela família, a base fundamental no seu equilíbrio e bem-estar.

Força de vontade

Agora com quase 20 anos, João nasceu paralítico. Apesar dos esforços empreendidos pelos pais para resolver a situação, a deficiência continuou. Uma vez que os parentes não têm condições, o rapaz apanha uma boleia de um amigo da família, que parte da Machava Socimol, onde vive, até ao Alto-Maé e caminha até a escola na zona do Museu, numa marcha lenta e díficil.

Quando não pode beneficiar da boleia, é obrigado a cumprir as habituais filas que se fazem para se ter acesso ao transporte, pois, apesar de ser defi ciente e ter um cartão que lhe facilitaria o transporte, as pessoas dificultam.

“Acordo às 5 horas. De casa até à paragem levo no mínimo 30 minutos, mas o que me preocupa não é o tempo. É sim, o sofrimento que enfrento para apanhar um autocarro dos Transportes Públicos de Maputo, (TPM)”, conta.

Muitas vezes, chega e sai tarde da escola. Não tem dinheiro para almoçar e há momentos em que fica o dia inteiro com fome. Excepto aos fins-de-semana, quando vai a igreja, a sua rotina resume-se ao trajecto entre a escola, casa e os lugares onde dá explicações. Lecciona todas as disciplinas, mas tem mais inclinação para algumas cadeiras específicas, como a matemática, a sua favorita.

João frequenta o segundo ano do ensino básico de contabilidade e transmite o seu saber a alunos da quinta à oitava classe. “O ano passado expliquei alguns alunos da décima, que estavam a preparar os exames. Graças a Deus, todos passaram”, diz.

Dá-se bem com os colegas na sala de aulas e não tem difi culdades em apreender as matérias. “Gostava mais de um professor que me dava a oportunidade para mostrar as minhas habilidades”, afirma.

Na escola em que João estuda, já quase toda a gente o conhece. Dos professores aos trabalhadores, o seu nome corre de boca em boca. Ao chegar é logo recebido pelos colegas da mesma faixa etária com os quais partilha a experiência. “Nós, que há tanto tempo o adoramos, conseguimos vê-lo para além da alegria que lhe ilumina os olhos”, disse um deles.

Após as aulas, os colegas gravitam sempre à sua volta, aglomerando-se no seu caminho, quer quando vão para casa ou quando estão de intervalo. “João é um tipo porreiro e lida muito bem com todos.

Conheci-o há uma semana e já nos relacionamos como se convivêssemos há meses”, disse uma jovem de outra classe. “Conheço-o há anos e confesso que é especial”, acrescentou um colega da turma para quem a inteligência e força de vondade do João são incríveis.

Entretanto, a sua popularidade não se limita à escola. É a mesma no bairro e na Paróquia da Sagrada Família da Machava Socimol, onde é tratado como um filho, faz parte do grupo dos jovens, participa nalgumas actividades e frequentou a catequese durante quatro anos até ser baptizado no domingo passado.

À pergunta sobre os seus sonhos, João respondeu sem pestanejar: “Gostaria de fazer Economia Florestal, dentro ou fora do país, mas antes precisaria de ganhar uma bolsa porque os meus pais não têm condições. “Sempre sonhei frequentar o ensino superior, mas preocupa-me o pão que o meu pai não consegue obter”, diz.

Pois é, sem contar muito com o progenitor, o rapaz depende em parte do pouco dinheiro que recebe das aulas que dá. “Normalmente cobro 100 a 200 meticais por cada pessoa. Sei que é muito pouco, mas é preciso ter em conta que são os meus primeiros passos. Quem sabe um dia as coisas melhoram”, acredita.

Como perdeu o ano

Este ano, João seria um estudante fi nalista do curso que segue, mas por razões alheias à sua vontade, chumbou a Português, Inglês e Contabilidade Geral, por sinal disciplinas sem exame e explica porquê: sucede que em 2010, seguindo os conselhos de um amigo, submeteu uma carta ao então ministro da Saúde, Ivo Garrido, solicitando uma oportunidade para estudar fora do país, quiçá, numa escola para pessoas com as suas características.

O antigo ministro correspondeu às expectativas do rapaz e deu um despacho positivo. Mas, antes sugeriu que fi zesse testes e fosse observado por um médico para aferir o grau da sua situação de saúde.

Dito e feito, João foi chamado para fazer testes, no Hospital Central de Maputo, (HCM) mas os médicos raramente apareciam. “Das poucas vezes que fomos atendidos, os doutores pediram para ver como andava, falava e se o problema o acompanhava desde criança. Chegávamos sempre ao hospital às 7 horas e voltávamos às 13 sem sermos atendidos”, recorda a mãe.

Todavia, enquanto frequentavam as consultas que na verdade nunca chegaram a acontecer, as aulas na escola prosseguiam. João não pôde ser submetido a algumas avaliações, exactamente nas disciplinas em que chumbou.

Refira-se que o episódio decorreu ao longo do mês de Setembro passado. Quando voltou às aulas tentou ganhar tempo, mas já era tarde. Apresentou um atestado médico para recuperar as avaliações, mas os professores fizeram ouvidos de mercador. O atestado médico não foi a única arma que usou para se justificar, também apresentou o cartão de deficiente.

Se continuasse a frequentar as raras consultas médicas, acabaria por perder completamente o ano. “Eles é que chamavam, mas, quando chegávamos lá, mandavam regressar noutro dia”, conta para depois acrescentar: “sei que tenho uma grande determinação e que não desisto facilmente”, diz. “Os meus pais sempre me ensinaram a ir atrás das coisas. Nada é impossível”. Oxalá que João consiga!

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