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João Paulo: um ano é muito tempo

João Paulo: um ano é muito tempo

Num dia desses, com a guitarra a tiracolo, o intemporal John Lee Hooker chegou à estação de comboio, nos Estados da América, em tempos de verdadeiro ouro, dirigiu-se à bilheteira e disse: “dê-me um bilhete apenas de ida.”

– Para onde?

– Para qualquer lugar.

João Paulo adorava cantar as músicas desse louco que, após temporadas vagabudeando pelas ruas, foi hasteado pela sua entrega com denodo e criatividade, ao blues. João Paulo era também uma recriação de John Lee Hooker e um dos fiéis intérpretes do blues em todo o mundo, porque o fundador de Os Monstros, era um músico de categoria global.

Quando ele morreu – o JP, como lhe chamavam os amigos – já era uma inquestionável réplica de sobras dele mesmo, em termos físicos, porque, espiritualmente, João Paulo ainda vivia no Céu. Sentia-se isso na voz que emanava um tempo de outros metais.

No Gil Vicente, onde este grandioso músico destilava os seus sentimentos sublimes, através de uma voz enroquecida pelo blues e pelo whisky, ainda hoje se sente o seu cheiro. Indelével. Todos aqueles que tiveram o privilégio de o ouvir cantar naquela casa, nunca se esquecerão dele, sobretudo pela sua capacidade de prender todos aqueles que o vão acompanhar.

JP foi homenageado no dia da sua morte (17 de Fevereiro), na última terça-feira, no Gil Vicente, na cidade de Maputo, local onde ele adorava estar, relembrando e eternizando nomes como Joana Connor, Big Joe Turner, Nat King Cole, Robert Johnson e Muddy Waters. João Paulo era, definitivamente, um homem do blues, um homem que nasceu num tempo de ouro, criando uma banda que terá nele o epicentro: Os Monstros.

Também JP era um homem frágil. Entregava-se facilmente ao whisky, que lhe ia devorando as entranhas, matando as suas células devagarinho, até ao dia em que, já não havendo mais células para devorar, a morte executou todo o corpo de um homem que será lembrado sempre que se evocar o blues como lamparina, e JP era uma lamparina.

Iremo-nos lembrar ainda – neste dia em que nos rendemos ao homem ronga e absolutamente competente – de uma figura incapaz de dar costas ao álcool. Que quererá beber até à última gota, até a garrafa acabar. João Paulo era assim: um verdadeiro louco, um noctívago, uma voz que nos deliciava até ao ponto mais profundo dos nossos sentimentos. Lembrar-nos-emos dele sempre que passarmos pelo Goa, onde “morava”, onde era amado, onde era querido.

Depois de cada palavra articulada pelo João Paulo, nós queriamos outra palavra. JP era um conversador nato, culto. Conhecia a vida e cantava como um anjo embriagado. Foi ele que nos disse, um dia, com um copo de whisky na mão direita, feita concha, que o Goa era o “Bar dos Crânios”. E, na verdade, é: até hoje vê-se e sente-se isso. Muitos dos que lá bebem, serão figuras respeitadas no meio intelectual maputense. E João Paulo era um intelectual com estrutura.

Um dia, no Gil Vicente, JP cantava como uma orca. A voz sabia a whisky, era suprema. Era um homem magro que estava no palco, calças jeans apertadas, botas à Beatles, mais do que cambadas, um jaquetão preto e castanho, e mexas na cabeça. Cantava como um louco e intercalava as músicas com um gole que lhe queimava as cordas vocais e tornava a voz mais espectacular.

Bebia Jack Daniel’s e deixava o copo por cima de uma das colunas. Bebia e falava, comunicando com todos. Falava em português mas, quando se vai aperceber da presença de um grupo de estrangeiros, sentados em duas mesas, deslizará imediatamente para o inglês e nós, seus correligionários, que nos arranjássemos. JP já estava endiabrado. Cantava e bebia e conversava, contando histórias e histórias do blues. Em inglês.

O grupo de estrangeiros ficou enfeitiçado e mandou comprar uma garrafa de Jack Daniel’s, que João Paulo não desdenhou. Continuou a beber como um louco que era e a cantar como se estivesse no topo de uma montanha. Mas esses serão os derradeiros momentos da vida de um homem que pisou profundamente a terra e deixou baba. Mas também, se uma lesma deixa baba por onde passa, como é que João Paulo, que é superior a todas as lesmas, não vai deixar baba por onde passa?! Ele foi também vítima da sua própria desordem. JP atirou-se – de cabeça – para o pricipício, e já não podia voltar. Isto é, a partir de um determinado momento, ele abraçou uma vida letal e já não tinha capacidade de voltar para trás.

Contudo, não será por isso que João Paulo vai ser lembrado. Será por aquilo que ofereceu ao seu país: o blues, interpretado com fidelidade, fazendo sonhar, através daquela voz, àqueles que até hoje se rendem aos pés do ronga eternamente vestido de jeans e botas à Beatles e jaqueta preta e castanha. Ele morreu num sábado e os sábados eram sagrados para JP, como todos os dias.

CARREIRA DE OURO

Inciou a sua carreira nos anos ´60, tendo actuado, em algumas ocasiões, com os conjuntos musicais João Domingos e Orquestra Djambo. No início da década de ´70 funda “Os Monstros”. Ele descobriu a sua vocação musical no grupo coral da igreja Missão Suíça e teve como mestre o grande Gabriel Chiau. Para além de músico, João Paulo foi jogador de futebol no então Sporting de Lourenço Marques, nos juniores.

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