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Francisco Noa: Estremecendo crenças

Francisco Noa: Estremecendo crenças

Escrever é, para todos os efeitos, fazer estremecer o mundo das nossas crenças e das nossas convicções. Daí, talvez, a razão primeira e última destes escritos, oscilantes e fragmentários. Como tudo, afinal, na vida, dentro e fora de nós, ondulante e aquático.

Francisco Noa

A Letra, a Sombra e a Água, é o título do livro de Francisco Noa, a ser lançado em Maputo, no próximo dia 24. Chancelado pela Texto Editores, é uma obra que reúne – ao longo de quase duzentas páginas – textos que Noa foi escrevendo nos últimos dez anos e que foram sendo pontual e dispersamente tornados públicos, quer como comunicações, quer como artigos de jornais e revistas, quer, ainda, como pretextos para apresentações de livros.

Frasncisco Noa faz uma viagem empolgante – na esteira do conhecimento – através desta reunião de textos e pergunta-se a si próprio:

“O que é a escrita, senão este intermitente exercício de vermos as letras e as palavras fixarem-se precariamente na superfície luminosa da máquina que marca definitivamente as nossas vidas e o nosso imaginário”? Para ele, a escrita é um exercício de signos dançantes que a todo o momento se juntam, se desfazem, se refazem e se dissolvem.

“Tal como se, afinal, estivéssemos tentando escrever sobre uma superfície líquida, em que tudo é efémero e nos vai deixando o travo inquientante de que nada é real e de que nada fica para além do momento em que as coisas acontecem”.

É, pois – segundo Noa – por baixo desta estranha e absurda sensação de evanescência que vê essa malha líquida, tela dissolvente e instável, repousando num dispositivo a que se dá o inquietante nome de monitor.

“Na verdade, como que participante de um jogo que tem um fim em si, não tenho outra pretensão senão a de vê-lo (o jogo, claro) tornar-se expressão e tradução das minhas interrogações do mundo e dos livros que me rodeiam”.

Em “A Letra, a Sombra e a Água”, deparámo-nos, logo no primeiro texto, com um tema que não pode ser redundante: Tendências da Actual Ficção Moçambicana.

“Falar em tendências de uma literatura induz-nos, logo à partida, a assumirmos essa mesma literatura como um espaço onde se reconhecem marcas de vitalidade, pluralidade e diversidade estética e temática. Na verdade, é uma percepção que pode pecar por excessiva, pelo menos se olharmos para a litertura que hoje é produzida em Moaçambique”.

O autor diz ainda, nesta esteira, que apesar da heróica tenacidade de alguns e de algumas raras revelações, a literatura moçambicana tem atravessado, nos últimos dez anos, uma crise indisfarçada, quer no volume das obras produzidas, quer no que concerne à valia estética de parte delas.

“Contudo, apesar deste quadro pouco animador, vem ganhando vulto, quase que de modo paradoxal, um fenómeno singularmente novo na história ainda recente da literatura moçambicana e que tem a ver com o culto, embora titubeante, da ficção. Refiro-me mais concrectamente ao romance”.

Falar de Francisco Noa é falar também de uma figura sensível à música, sobretudo à música de um tempo de grandes filões de ouro. Encontraremos neste livro um texto em homenagem ao “O Fio da Memória”, um programa da Rádio Moçambique apresentado todos os domingos de manhã, da autoria de João de Sousa e Carlos Silva, duas figuras da velha guarda dos nossos meandros radiofónicos.

“Com a duração de uma hora, trata-se de uma refrescante e apelativa revisitação a algumas das glórias musicais do passado, tanto nacionais como mundiais. Aí é possível voltar a ouvir sons e tons imortalizados por nomes, entre muitos outros, como os de Nat King Cole, Cliff Richard, The Beatles, The Platters, Ray Charles, Frank Sinatra, Djambu 70, João Domingos, Fany Mpfumo, Amália Rodrigues, Louis Armstrong, Elvis Presley, Abdulah Ibrahim, Miriam Makheba, Tom Jobim, João Gilberto, Elis Regina, Charles Aznavour, Adamo, e outros”.

Escutar esse imenso e diversificado reportório é uma experiência sempre tonificante – como refere ainda o autor – pois a memória funciona aí inabalavelmente como um factor (re)ordenador de sensações, emoções e percepções aparentemente adormecidas. E a procissão dos nomes e das canções, independentemente da intensidade das preferências e da sensibilidade, vai-nos remeter, de forma inevitável, para uma espécie de zeigeist (espírito do tempo) onde o que parecia desprovido de sentido, passa a tê-lo, e o que apenas tinha algum se agiganta aos nossos olhos e dentro de nós, em especial quando fazemos o confronto com o absoluto nonsense do tempo em que (não vemos).

Francisco Noa tem essa sensibilidade do outro tempo e deste também, por isso nos diz:

“E, quando olhamos para sociedades como as nossas, onde cada vez menos se percebe de onde se vem e para onde se vai, o quadro tem tanto de cómico (pela forma como as imitações se processam), quanto de trágico, pela forma como a memória, mais do que uma ausência, se instituíu, em muitos casos, como uma assustadora e confragedora mutilação”.

O autor de “A Letra, a Sombra e a Água”, faz neste texto um reconhecimento à Rádio Moçambique, tendo em conta que vivemos a era em que todo o sindroma maior parece ser o da nossa desmemoriada condição.

“O exemplo da RM torna-se alegoricamente instrutivo. Como que a sugerir-nos que o destino das consciências e das nações que se prezam se tece, também, no fio da memória.

Francisco Noa, académico e crítico literário leva-nos, ainda, no seu livro, por espaços que passarão por “Modos de Fazer Mundos na Prosa Moçambicana”, onde, citando Nelson Goodman, defende que a feitura do mundo, tal como o cnhecemos, parte sempre de mundos já disponíveis, de tal modo que, neste particular, fazer é sempre refazer.

O autor faz-nos ainda recuar para o tempo colonial: “Literatura Colonial em Moçambique: o paradigma submerso”.

“Falar hoje em literatura colonial constitui, sem sombra de dúvida, um empreendimento verdadaeiramente delicado e temerário”.

De entre várias razões Noa cita o enorme e generalizado desconhecimento do que seja a literatura colonial, daí verificarem-se reacções de natural estranhamento com indisfarçáveis sinais de incompreensão.

“Mesmo para os que aparentemente manifestam algum conhecimento sobre a literatura colonial, rapidamente se verifica que assentam em bases precárias e que os levam erroneamente a identificar essa literatura que se fazia nas antigas colónias”.

Francisco Noa faz uma penetração em obras como, “Do Subúrbio colonial ao subúrbio Global: a encruzilhada de imaginários em José Craveirinha, Aldino Muianga e João Salva-Rey”, “O apelo da Diferença: para uma pedagogia da alteridade”, “O Papel do Professor no Ensino Superior”, “A Literatura Morreu em Moçambique”, “Crítica e Criação”. Estas são algumas das propostas que Francisco Noa nos apresenta num empreendimento que nos transporta ao encontro do saber.

 

 

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