Jesus, era assim como o conheciam. Era Jesus mas não era Cristo. Era um homem comum. Ser comum demais é que fazia dele diferente. A sua mãe chamava-se Maria, mas não era virgem. Não foi nenhum anjo que lhe apareceu a anunciar a gravidez. Engravidou por acidente. Acidente de trabalho, numa noite húmida, como todas as noites em que trabalhava, quando um demónio anónimo, entourecido de prazer, rompeu a casca ténue que lhes protegia um do outro, o preservati vo.
Não só era filho de pai incógnito, como também venerava um Deus incógnito: era ateu, investia todo o tempo em algo que lhe rendesse algum, e achava a igreja capricho dos abastados. A sua religião é a mesma que professamos diariamente, ir e voltar do trabalho. Mas Deus considerava-o seu filho, mesmo assim, como a todos nós.
Tal como Cristo, Jesus tinha discípulos, alguns putos que o ajudavam no expediente de lavagem de carros, na baixa da cidade.
Naquele dia, no intervalo entre um e outro carro, reclinado sobre um capô, de balde e pano molhado na mão, ferramentas indispensáveis, sentiu um rugido invulgar, um motor de cilindrada potente que se aproximava sem pressa.
– É patrão! – gritou um dos discípulos.
O carro estava limpinho. O lustro era incomparável. O vidro fumado baixou lentamente. O sol entrou veículo adentro e reluziu nas lentes escuras dos óculos obscuros.
– Engraxa-me os pneus – ordenou.
Com um assobio Jesus reuniu discípulos, um em cada roda e, como nas eficientes equipas de fórmula um, despacharam os pneus enquanto ele, recostado no vidro do carro, acertava:
– Tenho uma bolada – disse o patrão, baixando com o dedo os óculos escuros. Os olhos de Jesus acenderam, a pupila dilatou, viam-se cifrões na íris, e teve uma erecção expontânea.
– Às três em ponto, vai haver um apagão – segredou-lhe –, tens vinte minutos para trabalhar – entregou-lhe uma mochila, com luvas e alicate –, às três e vinte vão religar.
Hipnotizado com os cifrões, voltou para casa mais cedo. Não teve companhia na sua últi ma ceia. Acordou muito cedo. A garrafa de plástico, sua Maria Madalena, companheira de todas as noites, estava ao seu lado, com o que restara daquela bebida que aquece os ossos, queima a alma e chamusca o fígado.
Quando tragou o último gole como se a beijasse, o corpo estremeceu e ganhou coragem, como se ti vesse accionado um motor de arranque.
Estava frio. Quando as três horas aconteceu o apagão, já estava a postos e fez-se ao poste, com agilidade de quem trepou muitos coqueiros na infância. O alicate estalou como se cortasse o silêncio da madrugada. As gotas de orvalho estremeceram quando o cabo se desprendeu e caiu lentamente. Dois homens saídos do nada, gritaram:
– Ladrão de cabos! Ladrão!, Ladrão!
Em poucos segundos, populares enfurecidos surgiram do escuro, com velas e candeeiros na mão, e cercaram o poste. Lá de cima, Jesus estava em xeque-mate. Começou a rezar.
– Ladrão!, Ladrão! – gritava-se.
Jesus que não era Cristo, filho de Maria que não era virgem, era bom homem, mas como todos os bons homens, não era santo, mas não adiantava explicar. Tal como Cristo, foi espancado e humilhado. Não foi pregado à cruz, mas foi amarrado ao tronco mijado duma acácia. Não teve direito a uma coroa de espinhos, mas foi coroado com um pneu e regado com um combustí vel muito inflamável.
Jesus chorava e sentindo que Deus não estava por perto, parou de rezar. Em desespero, não podendo fugir, ganhou coragem e desafiou, com a voz trémula mas decidida: – Quem nunca pecou que me atire a primeira pedra! Houve hesitação, um súbito e curto silêncio, interrompido quando um homem muito agitado, de fósforo na mão gritou, acendendo:
– Ladrão! – os outros responderam com o mesmo grito.
No meio do tumulto Jesus viu o fósforo voar na sua direção. O banho de combustí vel a transformar-se em banho de labaredas. As chamas, mais quentes do que o álcool a que se acostumara, entranharam-lhe pela carne, ferveram-lhe o sangue, secaram-lhe as lágrimas, queimaram-lhe a voz, o grito chamuscado cortou, como um gume afiado, a madrugada.
De manhã, quando a TV chegou, as crianças de uniforme escolar e livros na mão, ainda comemoravam.
– Ladrão! Ladrão!
No fim, quando a história já estava contada, veio a polícia com a pontualidade que se lhe conhece.
Ao terceiro dia, na reanimação do Hospital Central, Jesus ressuscitou e foi para o céu.