Encontraram-me volta da meia-noite a dormir, bateram na porta a pedir licença e quando abri deparei-me com cerca de 50 pessoas, todas armadas de catanas. Elas obrigaram-me a penetrar no interior da casa, tirar a “cólera” e lhes entregar, mas eu respondi não saber de que estavam a falar. Este é o depoimento de Sandra Assuate, activista da Cruz Vermelha de Moçambique (CVM) em Quinga-sede, que há dias foi violentada por um grupo de pessoas no distrito de Mongicual, província nortenha de Nampula, acusando-a de guardar “cólera” em sua residência.
O núcleo do problema é basicamente um: a população confunde a palavra “cólera” com “cloro” (desinfectante usado para tratar água), devido as semelhanças dos seus sons. Então, os activistas, técnicos e outro pessoal da saúde são acusados de distribuir “cólera”, quando em missão de campanhas de sensibilização contra a doença distribuem “cloro”.
O depoimento consta no “Noticias” que há dias cobriu a visita de trabalho da Comissão Parlamentar dos Assuntos Jurídicos, Direitos Humanos e de Legalidade da Assembleia da República em Mongicual para se inteirar das circunstâncias da morte de 13 pessoas nas celas da Policia moçambicana (PRM) naquele ponto do país. As pessoas que perderam a vida por asfixia faziam parte do grupo de 29 detidos nos dias 14 e 15 de Março passado.
Segundo Assuate, inconformado com a resposta, o grupo teria invadido a sua casa para procurar a “cólera”, mas não encontrou nada mais que uma capulana e dinheiro no valor de 200 Meticais. Depois eles levaram o dinheiro consigo. Depois da vasculha, eles amarraram a Sandra nua e arrastaram-na até a casa de um líder comunitário, de nome Carimo, residente na zona de Muetula.
“Antes da chegarmos à casa do líder fizeram uma escala num cemitério onde alguns defendiam que eu devia ser morta ali e outros o contrário, apoiando à que devia ser levada a casa do líder”, conta ela. “Chegados à casa do líder comunitário, o grupo usou a corda de uma bandeira para a amordaçar. Deitaram-me no chão e começaram a tirar-me medidas, que foram usadas para abrir uma cova onde me meteram e taparam com areia, até a altura do pescoço”, continuou.
“Eles pretendiam arrancar-me uma confissão sobre o local onde eu havia escondido a cólera. Insatisfeitos com o silêncio, eles fizeram uma fogueira junto da cova, para que o calor provocado pela combustão da lenha, fizesse com que eu recordasse o local onde supostamente tivesse deixado a cólera”, referiu ela. Este espectáculo macabro parou quando a mãe da Sandra chegou ao local e rogou que a sua filha fosse desamarrada para, ao menos, vestir uma capulana e os manifestantes decidiram sair para tomar uma refeição e voltar àquele sitio para decidir sobre o destino da activista.
Felizmente, tal não veio a acontecer porque quando as autoridades administrativas locais souberam do caso, trataram de solicitar apoio policial junto a sede do distrito, que dista a 45 quilómetros. A Comissão Parlamentar constatou haver ainda um clima de medo em Mongicual, sobretudo no Posto Administrativo de Quinga, onde algumas instituições públicas como unidades sanitárias e estabelecimentos de ensino continuam paralisadas porque os funcionários neles afectos receiam ser vítimas de perseguição.
Abel Safrão, chefe desta Comissão Parlamentar, disse que alguns enfermeiros e muitos activistas da Cruz Vermelha refugiaram-se em Liupo, deixando doentes, principalmente de cólera, entregues a sua sorte.