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Pandza: Helena

Helena tem um sorriso citrínico. Não, um sorriso não é fruta que amadurece e se amarela, quase a apodrecer. O sorriso de Helena é citrínico pelo sabor, adocicado pela vida e azedado pelo destino. Quando aquele rosto denso e marcado pelo cinzel do tempo se descasca de alegria, percebe-se-lhe a dentadura pálida, parecendo gomos alinhados duma tangerina, cumprindo na boca disciplinada formatura.

Vendo bem, toda ela parece uma árvore de tangerinas, pequenina, com os membros fininhos, a lembrar os galhos delgados e imóveis da tangerineira. O cabelo, indisciplinado, despenteando-se das tranças ou desalinhando o jimmy característico, imita as irrequietas folhinhas daquela árvore, esperando, impacientes, que o vento lhes farfalhe.

Antes de ser cedo, Helena deslizou, a passos serenos e gestos comedidos, maduros, pela casa. Num banho inscreveu no corpo os delicados códicos da higiene. Dispensando pressas, entregou-se às tarefas domésticas sem desperdiçar um sequer movimento.

Com silêncio nos gestos, a pluma dos dedos acariciou as coisas em que tocou, como se os objectos domésticos fossem teclas de um delicado piano: uma vassoura, um pano de limpar, outro de espanar, algo de engomar, um balde, e outros objectos vizinhos.

As panelas reconheceram-na à distância, e agitaram- -se como cachorros em cumplicidade com seus donos, tilitando uma na outra, quando Helena entrou para a cozinha, departamento preferido. Deixara a TV ligada noutro compartimento, ligou também o rádio para, música de um lado e noticiários de outro, povoar a casa de barulhos e enganar a solidão.

Da torneira a água jorrava em diálogos de cascata com as suas mãos. Numa velha peneira garimpava cacana: as folhas boas, frescas, para um lado, as partes menos frescas para outro. A tihacana, fruto da cacana, mereceu tratamento especial, num prato à parte. Pilado, o amendoím esperava paciente numa tigela pela hora da panela.

Atenta aos noticiários num ouvido, e acompanhando a música noutro, remava na panela a colher de pau. Deu por si a cantarolar quando do rádio se ouviu “Desportivo de São Paulo”. Emocionada, lembrou-se da infância. Quase que uma lágrima se derrete de nostalgia e rola pela face, quando a música falou d’ “…aquele matagal que viu meu pai morrer…”.

Enquanto a refeição fervilhava, acendeu um cigarro para também dar fervura à alma. Na pose característica, assim, mão na cintura, cigarro entre dedos, ombro recostado à janela, tragou os fumos e soltou o olhar, para distaaaaante. O penteado jimmy desenhava-lhe uma aura invulgar. O cigarro parecia crestar os minutos e os fumos que lhe alcatroavam os pulmões deslizavam pelos ares com obstinada leveza, imitando-lhe a paciência.

Entre uma e outra hora atendeu à porta. Era o filho dela. Cumprimentados, ouviu novidades e perguntou pelos netos. Na mesa havia arroz branquinho a fumegar. No prato do filho, aquela alvura contrastando com o verde da cacana parecia o Ferroviário e o Sporting, devidamente equipados, a jogarem um contra o outro.

– A cacana não é um prato solitário – dizia ao filho, oferecendo-lhe uma tigela com a segunda opção para o caril. – Amarga muito quando vai sozinha à mesa.

Ela sentou-se à mesa e acompanhou-o com um chá. Fosse sexta-feira, pagaria cinco meticais ao fulano que lhe vende o jornal gratuíto, o @Verdade, para ler o Pandza, enquanto mata-bicha.

– Come mais – disse ao filho, com ternura de mãe.

– Não posso, tenho que deixar espaço para comer lá em casa – argumentava o filho, cuja única infidelidade era comer verdura em casa da mãe, desprezando os pratos oleosos da esposa.

Comiam e o diálogo fluía de mãe para filho, muitas vezes em silêncio, como se um cordão umbilical telepático os ligasse. Os olhos da mãe pousaram numa pilha de jornais @Vverdade, que depois de lido o Pandza dobra e arruma como se os tivesse engomado.

– Escreveste o quê para o Pandza, esta semana? – perguntou ao filho, a leitora assídua.

– Uma pequena homenagem, para o oito de Março.

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