Numa noite de sábado, na cidade de Inhambane, um cidadão telefonou para o @Verdade dizendo que estava diante de um fenómeno muito estranho e que achava importante pôr-nos ao corrente do que estava a acontecer. É que um grupo de jovens estava concentrado no antigo “Bistru Pescador” – uma casa de pasto ora encerrada – para promover um churrasco e a condição de entrada era ser “preto de qualidade”. É verdade. E para tornar mais clara a advertência, os promotores vedaram o local com esteiras de palha e, usando um “spray” com tonalidade preta, escreveram, repetidamente, em letras garrafais, “pretos de qualidade”, para que ninguém tivesse dúvidas.
Era tarde demais quando recebemos essa informação e não pudemos deslocar-nos àquela hora para apanhar as coisas ainda quentes e poder contá-las com substância, sobretudo devido à distância do local dos acontecimentos. Mesmo assim, alimentámos a esperança de encontrar vestígios às primeiras horas do dia seguinte.
No domingo chegámos ao sítio e sentimos na pele de um agente da Polícia que tinha à sua frente todos os elementos do delito e o próprio criminoso a festejar a façanha. Antes de falar com o “criminoso”, fotografou vorazmente os “painéis”, incrédulo e revoltado com o que estava a constatar com os próprios olhos. E alguns jovens ainda estavam lá, a celebrar com as “últimas garrafas” na mão.
A princípio receámos aproximar-nos porque nas condições em que os jovens se encontravam podiam ser ofensivos, para além de que nos viram a tirar as fotos. Mas também não ficaríamos satisfeitos se voltássemos para casa apenas com as imagens, sem falar com eles. Cumprimentámos-lhes à distância e eles mostraram-se afáveis e educados, o que nos deu algum conforto.
A primeira questão que lhes colocámos foi sobre o significado de “pretos de qualidade”. Responderam-nos com evasivas, mas o que conseguimos reter é que aquela expressão era a sua marca de registo. Aliás, eles estavam autorizados pelo Conselho Municipal a realizar aquela festa com a marca “pretos de qualidade”. Perguntámos-lhes se sabiam que a prática de racismo é crime em Moçambique e a resposta foi a de que não tinha qualquer nexo. “Nós não estamos a praticar nenhum racismo, o que nós queremos mostrar é que temos a nossa maneira de estar, até porque estiveram aqui muitos jovens”.
Morgan Freeman, actor norte-americano, disse de forma muito transparente que o mundo será muito melhor no dia em que os homens deixarem de se preocupar com a cor da pele das pessoas e passarem a valorizar apenas a raça humana.
No dia em que se realizava o churrasco para “pretos de qualidade” encerrava na cidade de Inhambane a Conferência Nacional da Juventude. Com todo o direito, depois do acto oficial alguns jovens foram divertir-se e outros passaram pelo lugar referido para “bater um papo”. Ninguém estava contra aquele aviso primitivo estampado numa vedação porque um dos direitos de qualquer pessoa é devertir-se, em lugares privados ou públicos.
O secretário provincial da Juventude em Inhambane disse-nos o seguinte: “Eu acho que este assunto não tem nada a ver com o Secretariado Provincial da Juventude. É uma franja de jovens que decidiram promover o evento independentemente da nossa organização. Aqueles que foram ou passaram por lá fizeram-no por conta própria”. Mas o que nós queriamos ouvir daquele responsável juvenil era algo mais enérgico: “Não compete a nós tomar qualquer posição de impedimento ou autorização de um evento daquela natureza”.
Um movimento repugnante
Na cidade de Inhambane existe um mal-estar espiritual por parte de muitos jovens que souberam deste acontecimento. Eles dizem mesmo que estão a ser humilhados na sua própria urbe, por alguém que se julga superior aos outros. “Como é que o município autoriza um convívio destes com dizeres insultuosos? Com palavras atentadoras à nossa dignidade? Quem são esses meninos que se acham “pretos de qualidade?”. O que é que significa “pretos de qualidade?”. O município não pode permitir estes actos sob o risco de se tornar cúmplice de um insulto aos jovens e a todos os moçambicanos de raça negra”.
O debate que paira agora em círculos fechados vem despertar outras sensibilidades. Alguns dizem que os tais “pretos de qualidade” são “meninos bonitos” filhos de gente graúda, e que por serem filhos dessa classe consideram-se “pretos de qualidade”. Só porque eles têm dinheiro consideram-se gente de primeiro nível? Quantas pessoas sujas andam por aí cheias de dinheiro? O dinheiro pode-te dar tudo, é verdade, mas ele em si só não significa trampolim para a dignidade. Esses “meninos” devem ter maior respeito. Se não têm, então alguém tem que lhes educar.
Um jovem que não quis ser identificado referiu que “toda a gente sabe que em Inhambane, em particular na cidade, existem casos de um racismo velado, mas nós não nos importamos com isso, porque muitos desses que se julgam superiores em função da raça no fundo são vazios. Agora, virem publicamente com esta agressão, é inadmissível. É repugnante. Esses “pretos de qualidade”, se quiserem sobreviver, têm que encontrar o seu próprio mundo. Acho que alguém deve intervir para banir isso, e que jamais voltemos a ser agredidos por gente tão inculta”
Município não tem conhecimento
A marca “pretos de qualidade” anda também no “facebook” e os tais jovens orgulham-se disso. Sentem-se lisonjeados de ser mais pretos que os outros pretos. E ignoram que o seu acto é por demais ofensivo e criminoso. Narciso Zunguze, vereador do Conselho Municipal de Inhambane, disse que não tinha conhecimento deste movimento, embora o evento tenha sido autorizado pela edilidade. “Nós despachamos muitos documentos desse tipo. Pode ser que tenhamos chancelado essa festa mas o nome que eles usaram não foi esse, certamente”.
Em relação à fiscalização, Zunguze reconhece que pode ter havido uma negligência por parte da Polícia Municipal ao não ter ido ao local fazer o devido controlo. “Mas se na verdade isso aconteceu é algo condenável. Vamos chamar esses jovens para lhes advertir de que isso não pode voltar a acontecer. Eu não sabia, estou a ouvir pela primeira vez com o senhor jornalista, e agradecemos muito que nos tenha chamado a atenção. Vamos tonar as devidas providências”.
O que mais indigna, de acordo ainda com alguns jovens que se sentem insultados, é que este racismo é feito de pretos para pretos. “Este movimento pode parecer de somenos importância, mas uma pequena faúlha pode incendiar uma floresta inteira. Ainda temos feridas não saradas de racismo nas nossas mentes. Temos ainda outras feridas vivas nas estâncias turísticas ao longo da nossa costa, agora vêm estes meninos bonitos e querem humilhar-nos. Quem são eles para pisarem os nossos sentimentos?”
Outro jovem chegou mesmo a dizer que esses que se consideram “pretos de qualidade” são incultos. “A qualidade não tem raça. Este caso faz-nos lembrar um sábio que dizia o seguinte: O dinheiro não é uma ponte automática para a prosperidade. Uma pessoa próspera é aquela que é rica no seu global, incluindo o espírito, que tem de estar em paz. Um racista nunca está em paz, e as suas farpas só servem para criar guerras. Não queremos essas manifestações em Inhambane. Nem em Inhmbane, nem e nenhum outro lado”, finalizou.