A história das vítimas dos dias 1 e 2 de Setembro assemelha-se à de muitas outras neste país. A esperança de justiça, que se seguiu à morte de Hélio e à amputação da perna de Quito, foi comprometida quando o Estado se furtou à sua responsabilidade pelo sucedido. Hoje, ainda mais do que ontem…
Rute Silvestre foi ontem, dia 1 de Setembro, na companhia da família, ao cemitério de Languene colocar flores na campa do filho. É que ontem fez um ano que Hélio, o seu primogénito de 12 anos, foi atingido mortalmente com uma bala na cabeça pela PRM quando regressava da escola. Hélio foi uma das 18 vítimas mortais das revoltas populares que ocorreram o ano passado desencadeadas pelo aumento do custo de vida, sobretudo do pão e do combustível.
No último ano, a vida de Rute deu uma série de voltas. Logo a seguir à morte do filho, como um mal nunca vem só, ficou desempregada. A razão foi por ter faltado oito dias ao serviço, apesar de a lei dispensar do trabalho durante esse período uma mãe que tenha perdido um filho. Volvido um mês, conseguiu emprego e, pouco antes, acabou por engravidar porque na tradição africana tem de haver substituição imediata. Foi assim que no passado dia 11 de Junho, nasceu a pequena Conceição, hoje com quase três meses e a gozar de boa saúde.
Mas se a nível pessoal a vida, no último ano, nem correu mal a Rute, o mesmo já não se poderá dizer em relação aos aspectos jurídico-legais. Neste âmbito, as promessas ainda não passaram disso mesmo, apesar das constantes correrias para a Liga dosDireitos Humanos. “O advogado diz que falta um documento que tinha que ter saído do hospital. Mas no início não reclamaram. Eu apresentei todos os papéis. Agora dizem que não estão a conseguir apanhar esse papel”, refere, num tom saturado. E acrescenta: “Disseram-me que se o médico me desse esse relatório corria risco de vida. Já não sei o que fazer nem o que está a faltar!”.
Há pouco pediram a Rute que apresentasse testemunhas do ocorrido no final da manhã do dia 1 de Setembro do ano passado. “Mas eu já levei lá testemunhas. Agora não sei o que se está a passar”, refere, num tom de quem já não confia minimamente na conclusão favorável do processo.
Outra vítima
Numa outra residência, no mesmo bairro, as balas de 1 e de 2 de Setembro deixaram mais uma vítima. Não lhe tiraram a vida, mas levaram-lhe os sonhos. Primeiro, Quito foi atingido na perna quando regressava da escola por um projéctil disparado pela Polícia. Depois, por conta de uma “falha de procedimento” médico, amputaram-lhe duas vezes a perna direita. Actualmente, ele e a família batalham na vã esperança de que o Estado intervenha para reparar os danos. Agora, com menos fé do que no período pós-manifestações.
Uma bala que atingiu uma família
Antes da tragédia de 1 de Setembro, a progenitora ia frequentemente à vizinha África do Sul com o fito de comprar produtos, os quais revendia em Moçambique. Uma actividade que tinha os seus contratempos, mas que garantia o sustento do agregado familiar e dava para guardar algum dinheiro para pequenas eventualidades. O negócio, diga-se, corria de feição, até se dar a tragédia.
Assim, Maria do Carmo trocou o país vizinho, símbolo máximo da prosperidade familiar, pelo papel de enfermeira do filho que o Estado abandonou. Impossibilitada de se deslocar à África do Sul, Maria do Carmo tem de se desenvencilhar no bairro do Maxaquene para aumentar o minúsculo orçamento familiar. Passou a vender pão num local mais próximo de casa para não abandonar o filho.
“Este país inferniza a vida dos seus cidadãos”, diz . “Foi uma desgraça tremenda. O miúdo já fazia os seus próprios biscates, mas logo virou um dependente total”, afirma um vizinho.
Não fossem as marcas profundas, o primeiro dia de Setembro de 2010 seria uma data para esquecer. Com a notícia do incidente, o mundo dos Manganhelas quase desabou. Do Carmo, qual mãe sem útero, andou desnorteado pelos hospitais de Mavalane e Xipamanine e só ficou a saber do filho às 12 horas na Ortopedia 2 do HCM, onde foi atendida às 16h30.
“Andei assustada. Havia muitos cadáveres nos hospitais”, lembra. No entanto, saber que Quito não tinha morrido, diz, foi o mesmo que sentir que lhe devolviam o útero.
De acordo com as palavras de Quito, no carro onde se faziam transportar, vários feridos foram torturados pela polícia. Alguns agentes pisavam as suas feridas, alegando que se tratava de marginais.
Logo que a mãe avistou o médico no HCM, tratou de ouvir o diagnóstico sobre o filho. O especialista garantiu que o problema não era complicado. Mas, uma semana depois, outra sentença veio a terreiro: a perna de Quito devia ser amputada. O sangue já não circulava de cima para baixo. “Implorei, mas o doutor mostrou-se irredutível, sublinhando que outra solução seria impossível”, conta.
Afinal, Quito foi baleado num lugar entre o pé e o joelho, o tiro não atingiu a veia principal, para além de que o projéctil não ficou alojado no seu corpo.
Durante dois meses e três dias consecutivos no HCM, Maria do Carmo levava uma vida resumida entre a casa e o hospital. Numa sexta-feira, o filho começou a ter convulsões. Procurou o terapeuta e só o encontrou na segunda-feira.
“O médico disse que a perna seria amputada na quinta-feira e eu discordei, pois o garoto estava com convulsões há três dias. O especialista disse que não sabia e decidiram eliminar a perna na mesma segunda-feira, corria o dia 15 de Setembro”, conta.
Antes, a mãe falou com o médico para saber se o hospital ofereceria muletas. A resposta veio pronta: “Não”, conta. A mulher pagou uma taxa de 700 meticais referente à cama que o filho ocupava quando estava internado.
Na verdade, desde 1 de Setembro que uma bala mudou completamente a rotina de uma família. Talvez por isso, no dia 1 de Setembro Quito imaginou, mais uma vez, que voltava da escola sem passar pelo local onde as balas lhe amputaram os sonhos.