Os membros do Grupo Teatral Coração, que desenvolvem o seu trabalho no bairro de Laulane, algures em Maputo, comemoraram, na última segunda-feira (10), dois anos da sua existência. No entanto, embora o aniversário seja, para eles, sinónimo de vitória, o agrupamento rema contra a maré a fim de contornar diversos obstáculos existentes e garantir a sua afirmação nas artes, no geral, e no teatro, em particular.
Pelo aspecto superficial que, ao menos, se nota no interior do bairro de Laulane, há marcas indeléveis de sofrimento que, sorrateiramente, se revelam com o tempo. As extensas valas de drenagem de águas pluviais feitas no local remetem-nos à luta contra as enxurradas que há anos assolam os moradores. Talvez, por lá, ainda existam lembranças daquelas épocas – com destaque para o ano de 2012 – que ninguém, mesmo o “conformado”, quer recordar. Aliás, difícil seria contar.
Desajustados e receosos, os indivíduos da zona a que nos referimos passaram por maus bocados. Depois dos desastres, a luta pela sobrevivência e a reconstrução de uma comunidade sólida ficaram como projectos principais de quem se estabeleceu naquela povoação, de tal sorte que, no mesmo ano e sob as mesmas condições calamitosas e penosas, surgiu o Grupo de Teatro Coração.
Embora perceba-se o contrário nas suas primeiras obras, não eram apenas os problemas enfrentados pela comunidade local que preocupavam, a exclusão da pessoa idosa, alegadamente por serem feiticeiros – uma realidade vivida em todo o país –, a luta contra os bens deixados pelos progenitores eram outros aspectos relevantes que perturbavam o Coração.
Presentemente, com nove membros activos, o “núcleo” é mais do que um agrupamento teatral. Na verdade, constitui a materialização do sonho de Pedro Dique, um artista nato que, através da arte de encenar, quer consciencializar a sua comunidade e salvaguardar a honra dos jovens que, por alguns motivos e na tentativa de sobreviver, enveredam pelos maus caminhos.
Aliás, segundo conta o defensor do grupo e, diga-se, das causas sociais, o Coração é o refúgio dos jovens de Laulane que pretendem abraçar o teatro. Mas, à mercê da sua própria sorte, o agrupamento ainda necessita de patrocínios e de espaço para realizar os seus ensaios, e, igualmente, mostrar as suas obras a sociedade, onde a prática de assistir a actividades artístico-culturais vai minguando a cada dia que passa.
Mergulhado num mar de incertezas, os membros do grupo apoiam-se no seguinte adágio popular: “a esperança é a última que morre. Por tanto, tarde ou cedo, um dia, vamos conseguir alcançar os nossos objetivos”. Na verdade, tal como qualquer artista, o desejo do Coração é de ter um patrocinador para que o seu trabalho seja mais credível.
Outro desafio do agrupamento é imortalizar o desiderato de ver a sociedade livre dos problemas relacionados com a violência doméstica, o consumo de estupefacientes por parte de adolescentes e jovens, a discriminação das etnias, entre muitos outros problemas que ainda prevalecem.
A partilha do palco
Para a concretização do sonho do Coração, além de exibições teatrais, outros artistas convidados contribuíram no espectáculo, através da dança e do canto. Trata-se, porém, de Esquema Dance, Tima Torra, Pitas Nervosas, Dreams Boyz e os grupos de teatro Gumula e Penumbra.
Diante das adversidades existentes no nosso país, cada participante ilustrou, através da sua modalidade artística, o que mais lhe incomoda. Por exemplo, os membros de Gumula animaram os presentes com “Os Drogados”. Diríamos que não foi obra do acaso que, justamente naquele povoado onde os “desregramentos” lideram, os actores mostraram esta realidade experimentada por jovens e adolescentes. Mas, se não foi propositado, valeu apena a coincidência.
A peça – uma réplica exacta do que se vive nas famílias moçambicanas – versa sobre a vida, diga-se de passagem, da classe mais ingénua (adolescentes e jovens) que, face às dificuldades sociais, optam pelos vícios para “afogarem as mágoas”. Com o trabalho, Gumula não só conquistou o coração do público de Laulane, que há muito esperava por momentos similares, como também desencorajou o consumo de narcóticos.
Outro momento de êxtase foi proporcionado por Pitas Nervosas, Tima Torra e Dreams Boyz. Para além das animações feitas por estes artistas, e por sinal todos amadores, os miúdos de Esquema Dance reavivaram um estilo de dança pouco vista nas comunidades. Chama-se house e a sua particularidade nota-se a partir da complexidade e da rapidez na movimentação das pernas e do tronco.
Todavia, apesar da chuva que ao poucos, até se agravar, molhava a plateia, o Coração não se deixou intimidar. Aliás, o agrupamento está há dois anos a ensaiar e a encenar em espaços alternativos. Desde a sua fundação, o grupo passou por várias situações difíceis e, em alguns momentos, os seus constituintes pensaram em abandonar os palcos.
Na verdade, as dificuldades mais intensas foram sentidas no princípio da fundação do agrupamento, quando os pais e encarregados de educação dos integrantes não apoiavam os seus educandos. E, as razões são simples: Nenhum progenitor gostaria que o seu filho morresse pobre. E a arte não é promissora.