Um relatório “maquilhado” e com meias-verdades sobre os direitos humanos em Moçambique é o que o Governo está a preparar – com atraso – para ser apresentado ao Mecanismo de Revisão Periódica Universal do Conselho dos Direitos Humanos, na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Genebra, em 2016. O documento debatido na quarta-feira (14), em Maputo, num seminário que visava colher as contribuições, poderá não ser submetido floreado e omisso àquele organismo porque algumas organizações da sociedade civil e parceiros do Executivo, presentes no encontro, repreenderam branda e benevolentemente o Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, que coordena a sua elaboração.
Em 2011, as Nações Unidas reconheceram que Moçambique registou avanços significativos em matéria de protecção dos direitos humanos, mas devia melhorar o sistema prisional, eliminar as execuções sumárias, as torturas e humanizar as cadeias, aperfeiçoar os mecanismos de acesso à informação, entre outros aspectos. Desde essa altura, o Governo engajou-se bastante e no jargão e no chavão políticos teve “resultados encorajadores”; porém, o combate com eficácia à criminalidade, sobretudo nos centros urbanos, ainda deixa a desejar. A crise político-militar, também, manchou a democracia, que desde 2013 (21o aniversário do Acordo Geral da Paz) é marcada por um braço-de-ferro e confrontos armados entre a Renamo e o Governo.
O Conselho dos Direitos Humanos, criado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a 15 de Março de 2006, pretende denunciar as situações de violação dos direitos humanos no mundo e produzir recomendações aos países que estejam a violar tais direitos.
A tensão político-militar no país tem feito com que um país inteiro resvale, paulatinamente, para o caos e é uma clara violação dos direitos humanos. Contudo, no relatório preparado pelo Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos este assunto não é abordado.Num dos capítulos, o documento em questão fala do “processo político e eleições” e não diz que os moçambicanos vivem amedrontados, em algumas províncias prontos para fugirem em debandada mal ouvirem o som de um tiro; e estão num futuro incerto por conta de eleições que para o maior partido da oposição não foram transparentes e reclama vitória.
“Embora ainda não tenha havido uma alternância política em termos partidários na condução dos destinos do país, o processo democrático na República de Moçambique tem sido reforçado na medida em que a Constituição, conjugada com outros dispositivos legais, concede aos cidadãos o direito de alternar o Governo de forma pacífica e esse direito é exercido na prática através de eleições periódicas”, indica o relatório do Governo, que em relação à descentralização refere que esta “ocorre de forma satisfatória com a criação das autarquias locais (…). O Governo empenhou-se na criação de mais distritos para melhorar a prestação de serviços”. Contudo, não se diz que a qualidade de vida nesses lugares é precária, tal como acontece nos locais com meio ou um século de existência e elevação à categoria de cidade.
Fome
No que diz respeito à fome, Moçambique atingiu o primeiro Objectivo de Desenvolvimento do Milénio, mas, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), um quarto da população continua afectada e a insegurança alimentar e desnutrição crónica (43% em todo o país), principalmente nas crianças prevalecem. Aliás, neste momento, nas províncias de Gaza e Inhambane 138 mil pessoas encontram-se numa situação crítica de “insegurança alimentar aguda” e seca. A situação ameaça afectar outras províncias, segundo o Governo.
Criminalidade
Em relação à criminalidade, desde 2011, altura da apresentação do primeiro documento, os moçambicanos vivem desassossegados. Os raptos continuam a gerar pânico, desde 2012, mormente em Maputo e Matola. Os sequestradores, alguns dos quais têm sido detidos e julgados mas os mandantes e as redes de que fazem parte ainda são publicamente desconhecidos, continuam a desafiar as autoridades e agem de tal sorte que desacreditam a eficácia dos agentes da Lei e Ordem, sobretudo do sector de investigação criminal.
A lista dos assassinatos sem esclarecimento, por parte da Polícia e tão-pouco da Procuradoria-Geral da República (PRG), é extensa e vai desde o jornalista Paulo Machava e o constitucionalista Gilles Cistac, passa pelo juiz Dinis Silica, até desembocar em Vicente Ramaya e Paulo Estêvão Daniel, entre outros.
Serviços penitenciários
Nesta subsecção, o relatório que devia ser submetido a 18 de Outubro em curso ao Mecanismo de Revisão Periódica Universal do Conselho dos Direitos Humanos refere que, apesar de alguns ganhos, as penitenciárias moçambicanas continuam a ter “alguns problemas”, particularmente de superlotação. Elencam-se várias leis que regem este sector e, para a salvaguarda dos direitos humanos, fala-se das acções do Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ) e diz-se que nas cadeias há 15.946 reclusos (incluindo crianças), dos quais 10.762 condenados e 5.184 em prisão preventiva.
Abdurremane de Almeida, ministro da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, que em nome do Governo de Moçambique vai apresentar o relatório a que nos referimos, em Genebra, disse à margem da abertura do seminário em Maputo que não constitui “segredo para ninguém que nós temos problemas, sobretudo, de âmbito do espaço. (…) As nossas penitenciárias estão praticamente ao triplo das suas capacidades, sobretudo as grandes penitenciárias como a de Maputo. (…) Não podemos, de maneira alguma, dizer que estamos dentro das linhas. Podemos dizer que estamos a forçar esta área dos direitos humanos, porque as pessoas estão praticamente apinhadas”.
Durante o debate do documento e alusão, Débora Nanja, pertencente a uma instituição cujo nome não registámos, disse que não se pode negar os avanços e as boas práticas em relação à promoção dos direitos humanos que o Governo moçambicano fez e isso deve constar no relatório. Todavia, é preciso que haja transparência e não se maquilhe a realidade. De acordo com ela, a verdade é que no tange ao acesso à justiça, através do IPAJ, tal não é ainda agradável. Afirmar que esta instituição do Estado tramitou milhares de processos de gente em privação de liberdade não basta. Para as Nações Unidas tem mais peso demonstrar quantos cidadãos viram os seus casos resolvidos de forma satisfatória.
Legalização das minorias sexuais pode dar barulho
Relativamente à legalização da Associação para a Defesa das Minorias Sexuais (Lambda),um assunto pendente há oito anos, “simplesmente, o Governo não definiu como prioridade tomar conta da vida dos homossexuais, eles podem fazer o que quiserem desde que não pisem na linha vermelha, cometendo crimes”, disse à Imprensa Abdurremane de Almeida, acrescentando que “as nossas prioridades fundamentais são dar comida, emprego, saúde, educação e paz aos moçambicanos e não ver sobre a vida dos homossexuais (…)”.
Mas Débora Nanja advertiu que o ministro não vá dizer isso no Conselho dos Direitos Humanos em Genebra pois o país pode ficar manchado, mormente porque a questão desta agremiação consta das recomendações das Nações Unidas no relatório passado, para além de que a sociedade civil tem feito pressão para a sua legitimação. Por isso, o Governo que se prepare para levar “chumbo grosso” mas para evitar tal situação seria melhor antecipar-se para não deixar a imagem de que marginaliza e estigmatiza as minorias sexuais.
Direito à informação e outras matérias excluídos
No relatório em preparação não se fala, por exemplo, do direito à informação, uma área fundamental para assegurar a promoção dos direitos humanos. Os organizadores justificam-se afirmando que há muita informação que ficou de fora por não caber no documento porque ao Mecanismo de Revisão Periódica Universal do Conselho dos Direitos Humanos só é aceite um documento com 20 páginas no máximo, ou seja, 10.700 palavras.
Basicamente, no documento não se assume que, volvidos 40 de independência, pese embora muita coisa tenha melhorado, o acesso à Justiça, condição indispensável para o exercício da cidadania e do pluralismo democrático, continua longe de satisfazer as expectativas do cidadão.
Sobre a actuação da Polícia da República de Moçambique (PRM), que, para além de excesso de zelo, demonstra abuso de poder e autoridade, tudo dá a sensação de que o país vive num mar-de-rosas. O mesmo acontece em relação à habitação, ao acesso à água potável e ao saneamento básico, em que os número em milhares são elencados com a intenção de passar a imagem de uma nação onde os seus cidadãos levam uma vida digna.
Sobre o direito à educação, Débora Nanja disse que os progressos são notórios mas não se diz no relatório que, não obstante o número de crianças em idade escolar estar a aumentar de ano para ano, no ensino primário continua a haver muitas reprovações, milhares de alunos não transitam para o ensino secundário, prevalece o problema de retenção dos instruendos nos estabelecimento de ensino, e as raparigas continuam a não ter a protecção necessária para progredirem em igualdade de circunstâncias com os rapazes.
No que diz respeito à terra, arrola-se uma série de preceitos legais, mas não se fala da questão dos direitos humanos que são sistematicamente violados em processos de reassentamento para dar lugar a empreendimentos de grande vulto, principalmente das multinacionais como é o caso de Anadarko em Palma, na província de Cabo Delgado, onde, a par de Nampula e Tete, gente iletrada e que pouco ou nada percebe de leis é abusada em conluio com o próprio Governo que elegeu.