Era aquela hora em que o mundo começa a ficar flácido e a noite já pesa nas pálpebras. O tempo escorria com uma ampulheta embriagada, e as pessoas, alguma já com os sapatos nas mãos, iam desistindo da noite. A sala foi ficando vazia, aos poucos.
O volume da música foi diminuindo e o som agora arrastava-se, entupindo as colunas, numa quase música de adormecer mosquitos. Uma mistura a suores, perfumes e álcool azedava o ar. Nos copos marcas de batom. Pelo chão guardanapos caídos. Bêbados de sangue de bêbados, os mosquitos voejavam aos ésses.
As lâmpadas olhavam- me com uma luz que, apesar de pálida, me constragia. Sorvi um gole que me azedou a língua e molhou a timidez. Ao contrário das pessoas ali presentes, a cerveja quente já não espumava.
Há sempre uma mulher de fim de festa, acesa, falando mais alto do que o burburinho de vozes e risos, dançando mais do que o compasso da música sonolenta, e rebolando mais do que o corpo sugere. Até mesmo quando a música se calou ela continuou a balançar-se pela sala, abraçada ao copo.
– Eu não preciso de música para ser feliz – desabafou a mulher, tropeçando na própria fala e chovendo salivas. Sacudia as saias e dançava o silêncio, como um pássaro que sacode as penas e voa, sem precisar de vento.
No embalo, virou-se para o DJ distraído da sua missão e alertou-lhe para as suas competências:
– Põe lá pandza, pá!
A sugestão acordou o DJ que começou a caminhar com os dedos trôpegos pelo teclado de laptop ligado a uma aparelhagem made in algures no oriente, e selecionou uma mp3 a preceito.
– Isssh! – desabafou a mulher de fim de festa, como se o ritmo lhe doesse nalgum sítio, quando o som bombou da coluna e ela saltou para o meio das sala.
Uns, como eu, marcavam o compasso com o pé. Outros cadenciavam com a cabeça. Fui percebendo que o pandza é um ritmo indisciplinado, que em vez de nos entrar pela porta de um som que se preza, o ouvido, ia subindo pelas pernas e entranhava pelos poros, como um formigueiro agradável, que se ia apossando dos corpos das pessoas, levando-as a um inexplicável transe de sacudidelas e rebolados.
Para ganhar mobilidade a mulher subiu a saia justa, zukutando à medida que se agachava, deixando perceber no céu da pele toda a astrologia de cicatrizes. Começou a serpentear e a sacudir-se, realçando os contornos já nos limites do best before.
Anca para lá, anca para cá, indicava todos os pontos cardeais só com o movimento da bacia: norte, sul, este e oeste, assim: sáaah! sáaah! sáaah! Inclinou a cabeça, encolheu o ombro, com o olhar de soslaio e a boca tortuosa, apontou-me com a anca e fez “anda cá”dobrando o dedo.
Dei outro gole, mas a minha timidez não me deixou ir. Foi quando ela, sacudindo os ombros, começou a vir, a vir, a vir, com “maprovocos”. Eu estava sentado e os volumes dela já se abanavam nas minhas barbas.
A estrutura do soutien aguentava aqueles abalos e resistia à gravidade. Tirou-me da mão o copo, desapertou e puxou- me pela gravata que me encoleirava. Cachorro dominado, fui parar no meio da pista. Tímido e sem destreza, não me mexi, mas ela não se deu por vencida. Manobrou, fez inversão de marcha sem sinalizar e começou a rebolar a bagageira.
Fez uma lenta marcha atrás sem olhar para o retrovisor até chocar comigo. Inclinada, com uma mão apoiada no joelho e a outra a segurar as costas, contorceu-se em indescritíveis massinguitas. Nessa altura, impelido por outros impulsos, comecei a responder ao apelo rítmico do pandza. Mexi-me, sacudindo a bacia para frente e para trás, naquele passo had-hoc que todo o macho sabe dançar.
Com o meu tamanho roliço, desengocei-me para cima dela, assim, assim, assim. Sáaah! Íamos e vínhamos. Subíamos e descíamos. Senta baixo. Toma que te dou. Gomara saia. Coma limão com casca dele. Txuza. Ishhh, yowê. Animou.
Dei um último gole para me ir embora, porque um convidado que se preza não deve ser o último a sair. Apetecia abraçar a todos, agradecer-lhes e dizer-lhes quão foi bom ter estado naquela festa, mas não sou dado a despedidas.
Lá fora a alvorada já se insinuava à escuridão.
– Espera! – Ouvi. Era aquela mulher. Aproximou-se, com um sorriso de final de festa. – já te vais? – perguntou, arrastando a fala.
– Sim, está na hora – respondi-lhe.
– Fica mais um pouco – pediu, inclinando a cabeça para o lado.
Ainda arfávamos. No peito dela os volumes pendurados enchiam e vazavam. No olhar lânguido, mais pálpebra do que olhos, havia um brilho de pirilampo em fim de noite. O suor, cheirando à fêmea, borrava-lhe a maquilhagem e descobria os disfarces da beleza. Chegou mais perto.
Os cabelos postiços soltavam-se do penteado. Estava linda, ao meu olhar embriagado. Um hálito a pecado bafejou com álcool quando sugeriu, com intenções de fim de festa:
– Vamos dançar mais pandza. – Não. Chega de pandza – Respondi- -lhe com pena. – Outros projectos chamam por mim.
Entendeu. Despedi-lhe e fui, sem olhar para trás, para a frente é que é o caminho.
Adeus!