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Fernando Machiana: a esperança de Matalana

Fernando Machiana: a esperança de Matalana

No distrito de Marracuene, concretamente no povoado de Matalana, vive Fernando Machiana, um artista plástico cuja produção não circula para além daquela parcela do país. Apesar do seu inquestionável talento, a sua obra artística não tem sido promovida. Por isso, as suas habilidades são quase desconhecidas.

É um dos filhos mais velhos da povoação de Matalana. É instrutor de artes, pintor e chama-se Fernando Machiana. Um dos poucos artistas que – no que diz respeito às artes e à sua produção – continua a elevar o nome do seu bairro.

A ele, a par de artistas como, por exemplo, Champlino Ngweya, Lindo Nhlongo, um dos grandes vultos do nosso teatro, pertence a missão de dar continuidade às obras deixadas pelo maestro Filipe Machiana e pelos artistas plásticos Malangatana Valente e Mundau Oblino. Machiana é um homem de poucas palavras: “Se calhar deixo tudo o que podia dizer através da linguagem oral falada, nos ‘textos’ que escrevo a pintar”.

De qualquer modo, a falar ou a pintar, Machiana carrega uma responsabilidade messiânica: transmitir a experiência conquistada ao longo dos tempos aos mais novos e, consequentemente, garantir que a arte não desapareça de Matalana.

“Em Matalana temos uma fábrica de papel. Trabalhamos com as crianças das escolas locais. Queremos e continuaremos a transmitir a nossa experiência aos mais novos. Incentivamos a geração actual a valorizar as artes e a manter a nossa tradição na comunidade. Depois do falecimento do mestre Malangatana, a situação tornou-se mais difícil. De uma ou de outra forma, continuaremos a trabalhar”.

Machiana tem 75 anos de idade e, para si, a pintura é o pão de cada dia. Aliás, é a partir da arte que garante a sua sobrevivência. O pintor afirma que a sua relação com as artes plásticas começou em 1965, altura em que tinha 26 anos de idade. Mas, antes, quando frequentava a terceira classe, rabiscava desenhos livres nos papéis.

Foi a partir daí que começou a mostrar as suas obras a alguns artistas mais experimentados como, por exemplo, o mestre Malangatana. Antes de descobrir a paixão pela pintura, em 1950, Machiana emigrou para a África do Sul, onde viveu até finais dessa década. Em 1960 regressa a Moçambique, onde posteriormente trabalhou como técnico de refrigeração no Banco Nacional Ultramarino (o actual Banco de Moçambique).

“Quando regressei ao país era para ficar definitivamente, por isso tinha de encontrar formas de garantir a minha sobrevivência na terra que me viu nascer”, recorda-se acrescentando que “como aqui, em Maputo, trabalhava com maquinaria, depois da reforma seria difícil continuar a trabalhar nesse sector. Então, recuperei o gosto pelas artes, a fim de me dedicar eternamente a elas. Nessa altura procurei o mestre Malangatana que me apoiou bastante aconselhando-me a seguir a actividade artística”.

Presentemente, com o rosto menos juvenil, nas suas obras Machiana retrata cenas do meio rural, enaltecendo a sua tradição. Para além da valorização do seu lugar de campo, o artista não se cansa de disseminar aconselhamentos aos jovens moçambicanos: “Nos meus quadros falo da vida quotidiana da camada juvenil. Recordo-me de tudo que passei aquando da minha juventude e, estranhamente, actualmente é vivido pelos mais novos. É na juventude que estimulo o gosto pelo trabalho, pois ele dignifica o homem”.

Atento e receoso em relação aos problemas enfrentados pela sociedade moçambicana, Machiana lamenta pelos seus concidadãos e cria imagens que, se analisadas, nos conduzem à reconciliação e à caridade que, por sua vez, resulta na paz, no amor, no respeito, na amizade e na irmandade. Na verdade, o artista é contra os conflitos que têm a ver com o tribalismo e a pobreza que, diariamente, se responsabiliza por inúmeras perdas de vidas humanas na terra.

Embora a sua carreira artística tenha sido alavancada consideravelmente em 2006, ao frequentar o Centro Português de Serigrafia, onde se especializou em técnicas de gravura e serigrafia, as dificuldades da época e dos tempos actuais sancionaram-no desfavoravelmente de tal sorte que esta realidade, segundo conta, se reflecte na desgraça que é a sua vida.

“Quando saí de Moçambique, em 2006, para Portugal, onde aprendi a produção artesanal de papel, inocentemente, pensei que a vida fosse tornar-se fácil. Digo isso porque depois da formação tive que regressar ao meu país, onde, de imediato, provei o sabor da exclusão. Obrigado pelas circunstâncias drásticas a que era sujeito, tive de vender as obras que fazia para sobreviver”.

Actualmente, o pintor é membro fundador do Centro Cultural de Matalana, onde desenvolve actividades relacionadas com as artes plásticas com um grupo de crianças e jovens que pretende abraçar a profissão artística. Desde a morte de Malangatana até aos dias actuais, o centro ficou sob sua responsabilidade, a par de Champlino Ngwenya. Ensinando ou pintando para a sua sobrevivência, é como se a sua vida se resumisse por um ciclo de desgraças. Falta-lhe alguém que o veja como um artista, formador e protector das artes e cultura em Moçambique, no geral, e em Matalana, em particular.

“Ensinar as crianças a pintar não tem sido uma tarefa fácil, pois faltam-nos incentivos e materiais para o trabalho. Quando damos aulas, não o fazemos para um posterior retorno. Mas para que a nossa arte não despareça. Devido à falta de tintas, de pincéis e de papéis, o número dos petizes tem oscilado a cada dia. Em resultado disso, o centro não funciona como queríamos que funcionasse. Já não temos forças”.

Machiana é um artista autodidacta e, como se pode perceber no seu comentário, mesmo sem formação de especialidade, não se sente incapaz de criar: “Para pintar não é tão imperioso que se tenha passado por uma escola de arte. Até porque quando começámos a criar não havia nenhuma”, disse acrescentando que “na criação, o segredo é a ambição de produzir, de crescer e de aprender continuamente”.

O artista revela que já passou por grandes dificuldades para se afirmar como pintor. De qualquer modo, se tomarmos em consideração que, nessa época, contava com o apoio de outros mestres oriundos de Matalana, como são os casos de Malangatana Valente, Oblino Magaia, Dilon Ndjindji, Champlino Ngwenya, Filipe Machiana – muitos deles partilhavam o mesmo sonho – pode- se confirmar que, na altura, a vida era mais dinâmica.

“Trabalhávamos em equipa. Com a morte de alguns, ficámos sozinhos. Eles apoiavam- -me em qualquer projecto. Lembro-me de que quem me ajudou a pintar foi Malangatana, antes de ir morar em Maputo. Ao mesmo tempo, eu considerava-o um irmão, porque crescemos juntos e sempre convivemos”.

Segundo Machiana narra, há muito desassossego nas suas pinturas que se percebe não só a partir das figuras, como também das cores usadas. Nunca lhe falta o preto que, na simbologia africana, representa a dor e o luto sabiamente recriados com base na utilização da tinta-da-china sobre papel.

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